Os super-heróis costumam ter capas coloridas e uniformes vistosos que os identificam e caracterizam. David Dunn (Bruce Willis), apesar de ser quase invulnerável e ter uma força fora do normal, não segue esta tradição. Usa roupas normais, quotidianas, e quanto à capa, a dele é daquelas que resguardam da chuva. Em “O Protegido” (2000), o primeiro filme da trilogia de super-heróis alternativos de M. Night Shyamalan, Dunn enfrentava um vilão que também fugia aos estereótipos. Elijah Price/Mr. Glass (Samuel L. Jackson) era um homem invulgarmente inteligente com uma doença raríssima que lhe tornou os ossos quebradiços, um especialista em “comics” e um assassino de massas impassível e amoral.

[Veja o “trailer” de “Glass”]

De “O Protegido” até “Fragmentado” (2016), o segundo filme da trilogia, onde James McAvoy personifica Kevin Crumb, um homem com 23 personalidades, com o nome coletivo de A Horda, e sendo a dominante e mais perigosa A Besta, a estrela de Shyamalan em Hollywood brilhou com intensidade e depois quase se apagou, devido a fracassos como “O Último Airbender” (2010) e “Depois da Terra” (2013). Só com o sucesso de “Fragmentado”, o autor de “O Sexto Sentido” conseguiu as condições para fechar a sua trilogia, o que implicou que a Disney, produtora de “O Protegido”, o autorizasse a usar a personagem de David Dunn (“Glass” é, excecionalmente, distribuído por dois grandes estúdios, Universal e Disney).

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[Veja a entrevista com M. Night Shyamalan]

“Glass” pega onde “Fragmentado” largou, com Dunn, que entretanto se tornou num justiceiro urbano com a ajuda do filho, agora crescido, a procurar Kevin, que raptou quatro raparigas adolescentes. Dunn encontra-o, liberta as prisioneiras e subjuga A Besta, mas acabam ambos por ser capturados pela polícia e, por coincidência, internados no hospital psiquiátrico onde se encontra também Mr. Glass há muitos anos. Lá, o trio é submetido ao escrutínio da Dra. Ellie Staple (Sarah Paulson), uma psiquiatra empertigada e inabalavelmente racional, especializada em, tratar pessoas com ilusões de grandeza, que julgam ter poderes especiais e ser super-heróis (ou super-vilões). Para ela, Dunn, Kevin e Mr. Glass não passam de megalómanos auto-iludidos.

[Veja a entrevista com James McAvoy]

M. Night Shyamalan assina aqui um filme desigual, ferido de inverosimilhanças ostensivas (a pouca e desleixadíssima segurança e a displicência do pessoal do hospital onde estão fechados três indivíduos em princípio perigosíssimos) e com um final que tem uma reviravolta a mais. O que o puxa para cima é que Dunn, Kevin e Mr. Glass são, de alguma forma, super-heróis e vilões com uma medida humana, e não como os dos filmes baseados nos “comics” da Marvel e da DC, com os quais “Glass” não tem contiguidade e a que se apresenta como uma alternativa “cerebral” e meta-textual (passe o palavrão), apoiado nos atores, na narrativa e na câmara, em vez de depender dos efeitos digitais e da sua espectacularidade.

[Veja a entrevista com Samuel L. Jackson]

E como manda o título, Elijah Price/Mr. Glass é o pivô do filme. Ele aproveita a presença de Dunn (um Bruce Willis no mesmo registo sóbrio de “O Protegido) e de Kevin (McAvoy repete o brilharete de “Fragmentado” que as múltiplas personalidades daquele permitem) no mesmo sítio onde se encontra encarcerado, para assumir o papel de manipulador maquiavélico, atirando um contra o outro num confronto decisivo clássico. E fá-lo de forma a satisfazer a sua personalidade de fanático e perito de “comics”, como se estivesse a encenar, com todos os efes e erres, um enredo “real”, criado e controlado por si, e saboreando malevolamente as convenções das histórias de super-heróis (Shyamalan até acrescenta ao cozinhado um condimento de teoria da conspiração).

[Veja uma cena de “Glass”]

“Glass” é a espaços um bocado “mastigado” e por vezes quase que nos perdemos com a muita informação que nos atira para cima. Mas se me derem a escolher entre este imperfeito e envolvente filme de encerramento da trilogia iniciada há quase 20 anos por M. Night Shyamalan, e uma qualquer bisarma informe de super-heróis, com um cangalhada de efeitos digitais em cima, não hesito nem por um segundo. Ao menos, “Glass” tem por trás uma pessoa que sabe escrever um argumento, dirigir atores e filmar, em vez de um comité de argumentistas, de salas cheias de computadores e de “software” às pazadas.