Foram raros, mesmo muito raros, os jogos do Wolverhampton em que os treinadores adversários não se desfizeram em elogios na antecâmara do encontro. Mas também são raros aqueles que destacam de forma individual jogador A ou jogador B, resumindo as notas positivas sobretudo à capacidade que Nuno Espírito Santo teve em construir uma identidade dentro de um sistema sempre complicado de colocar em prática (entre o 3x4x3 e o 3x5x2). Houve ainda assim uma exceção. Uma exceção que, por norma, está à parte de todos os outros em muitos aspetos: Pep Guardiola, técnico campeão do Manchester City.

“Já jogámos com o Wolverhampton duas vezes e percebemos quão complicada é esta equipa. São muito físicos, têm jogadores rápidos no contra-ataque, são intensos defensivamente. E depois, nos últimos minutos, quando as equipas estão cansadas, lançam jogadores e tornam-se ainda mais perigosos”, comentou o espanhol antes do triunfo na semana passada na receção aos Wolves, condicionados pela expulsão de Boly logo aos 19′. “O Wolverhampton consegue controlar várias zonas, sobretudo do meio-campo, e têm o João Moutinho e o Rúben Neves. Rematam de todo o lado e são perigosos”, completou.

Falar de Rúben Neves na Premier League é moda. Aos 21 anos, o médio formado no FC Porto tornou-se no alvo mais apetecível de todas as observações de clubes de topo aos Wolves. E não seria de espantar que, no final da temporada, o internacional português desse o salto para outros patamares, mesmo que não fosse pelos valores que vieram a público, como o próprio Guardiola também comentou. “Há um mês li: ‘Rúben Neves, 100 milhões de libras [cerca de 111,9 M€]’. Isso não vai acontecer. Não pagamos esse valor por um médio de contenção. Temos um limite para gastos. É um excelente jogador, mas implica jogar com dois médios”, disse. Mais “anormal” é falar de Moutinho. Quando, se calhar, devia ser a coisa mais normal do mundo.

Aos 32 anos, o campeão europeu de seleções em 2016 faz da estabilidade um princípio da sua carreira. Formado no Sporting, onde se estreou como sénior e se tornou o capitão mais novo de sempre da história dos leões depois de Francisco Stromp, mudou-se para o FC Porto em 2010 numa das transferências mais polémicas do futebol nacional dos últimos anos e teve a primeira experiência no estrangeiro depois do tricampeonato nos dragões (entre oito títulos, entre os quais a Liga Europa de 2011) em 2013, ao serviço do Mónaco – onde ajudou a equipa na conquista do título em 2017 diante do super PSG. Esta época, cumpriu o sonho antigo de jogar na Premier League e mudou-se para o Wolverhampton, a equipa mais portuguesa de Inglaterra. E este sábado, diante do Leicester, provou em 12 minutos que chegou com 12 anos de atraso.

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João Moutinho voltou a defrontar um português na Premier League, desta vez Ricardo Pereira (ADRIAN DENNIS/AFP/Getty Images)

A campanha feita na Taça UEFA pelo Sporting de José Peseiro em 2004/05, onde os leões se cruzaram com equipas britânicas como Newcastle ou Middlesbrough, funcionou como um cartão de apresentação a um novo mundo que parecia esperar por si. Foi assim que, em 2007, após mais uma época em que chegou aos 50 encontros oficiais, recebeu sondagens de alguns clubes da Premier League antes e depois do Campeonato da Europa de Sub-21. O interesse não se traduziu então em proposta mas, no ano seguinte, a mesma chegou através do Everton. As negociações entre clubes ficaram a alguns milhões de distância e não se concluíram. E os projetos desportivos de FC Porto e Mónaco fizeram com que fosse adiando esse salto até 2018.

Com o tempo, evoluiu. Se já era certinho, tornou-se o exemplo de fiabilidade em qualquer equipa. Treina como joga, joga como treina, sempre de forma discreta. E são os números que o tiram da discrição e explicam a importância que tem nos Wolves, ao ponto de não ter ainda falhado qualquer um dos 23 jogos da Premier League. Em 15, cumpriu os 90 minutos; apenas em dois foi suplente utilizado. Métricas que ganharam outro fôlego no triunfo frente ao Leicester: em apenas 12 minutos, Moutinho cruzou para o 1-0 de Diogo Jota (4′) e marcou o canto para o 2-0 de Bennett (12′). Com isso, passou a ser o jogador do conjunto de Nuno Espírito Santo com mais passes para golo (quatro) e tornou-se o primeiro jogador do clube a fazer duas assistências no mesmo jogo da Premier League desde 2012, igualando o registo conseguido então por Kevin Doyle diante do Swansea.

O Leicester, pressionado pela recente série de resultados menos conseguidos, entrou mal e nunca se conseguiu refazer dos dois golos sofridos até ao intervalo de um jogo que foi para o descanso numa altura em que os ânimos estavam mais quentes em campo, depois de duas entradas duras de Ricardo Pereira (sobre Diogo Jota) e Diogo Jota (em Simpson). O melhor era mesmo seguir tudo para os balneários; para os foxes, representou muito mais do que isso: em apenas seis minutos, a formação de Claude Puel conseguiu chegar ao empate com Gray (47′) e Conor Coady, na própria baliza (51′). Tudo em aberto para uma partida que tinha ainda muito para dar e que continuaria a ser decidida pela armada portuguesa na Premier League.

A tendência caía para os visitantes, motivados por uma entrada demolidora que colocara tudo igual perante um Wolverhampton impotente para inverter o rumo dos acontecimentos. No entanto, já se sabe como a equipa da armada portuguesa é bem mais forte em termos de eficácia no segundo tempo e desta vez não foi exceção – numa saída muito rápida que apanhou o Leicester desequilibrado na transição defensiva, Rúben Neves conseguiu isolar com um fantástico passe em profundidade Diogo Jota e o avançado voltou a bater Kasper Schmeichel, naquele que foi o segundo golo no jogo e o quarto (mais uma assistência) nos últimos cinco encontros do Campeonato (64′). Parecia que a história estava escrita, sobretudo depois do 3-3 por Wes Morgan após  um livre lateral de Maddison (87′), mas ainda havia mais para contar. E em português: Rúben Neves teve mais um fantástico passe a rasgar para Raúl Jiménez, o mexicano cruzou rasteiro e Jota fez o hat-trick aos 90+3′.

A noite de sonho de Diogo Jota acabou de vez com o pesadelo de Nuno (e passou-o para o Chelsea)

Moutinho foi o grande destaque do Wolverhampton na primeira parte, Rúben Neves foi a unidade que desbloqueou de novo o encontro no segundo tempo. A dupla de médios está a fazer uma temporada fantástica não só pelo que jogam mas também, ou sobretudo, pela maneira como se complementam no corredor central. Pelo meio, houve Diogo Jota. Muito Diogo Jota. Tanto que a primeira coisa que o avançado português – que marcara pela última vez três golos no mesmo jogo quando estava no FC Porto frente ao Nacional em 2016 – fez após o apito final foi guardar a bola para mais tarde recordar. Até porque desde 1977 que nenhum jogador dos Wolves conseguia marcar um hat-trick na Premier (o último foi John Richards).

Outra curiosidade sobre o MVP do encontro: antes do hat-trick de Jota frente ao Leicester, apenas um português tinha conseguido apontar três golos num jogo da Premier League – Cristiano Ronaldo, pelo Manchester United, em 2008.