Título: “Atrás da porta e outras histórias”
Autora: Teolinda Gersão
Editora: Porto Editora
Páginas: 123

É habitual ver nestes contos pequeninos, de passos cuidadosos e seguros, sempre bem medidos, o primeiro teste para corridas de outro calibre. Teolinda Gersão, porém, já cumpriu a maratona em passos de bebé. É nestes contos miúdos que encontra a sua melhor voz, e nas miudezas que se vê o melhor desta voz. De facto, sempre que Teolinda Gersão cresce e tenta o grande plano, o interesse das histórias mirra. As considerações sobre o dinheiro, as empresas ou a humanidade são, no mais das vezes, preguiçosas; mesmo o cenário dos seus contos, o espírito, que come tanta tinta aos romancistas, em Teolinda é de aluguer. O dinheiro está nas mãos dos gananciosos, as empresas estão cheias de burocratas obcecados com a produtividade, as perguntas sobre o sentido da vida vêm de um manual filosófico – Não há vontade própria? É isso que nos move, o desejo de conhecimento? – e isto passa até para os cenários: a mulher fina passeia “um cãozito de luxo”, o Homem que pára nos cafés a encher-se de penalties não sabe ler e os trabalhadores das grandes empresas vivem insatisfeitos com o trabalho, presos numa vida tacanha entre a multidão corporativa e o ecrã da televisão.

Nada disto seria problemático – e muitas vezes não é – se estes cenários ou estas considerações fossem apenas a engenharia prática para aguentar a verdadeira história. O problema é quando estes lugares-comuns se tornam o foco principal da história. Quando um conto sobre a Dona Branca, em jeito de confissão post-mortem, se torna numa simplista arenga contra os bancos e os gananciosos, com uma proposta de redenção de todo o sistema financeiro através do apelo aos bons sentimentos; ou quando um conto sobre uma ida ao psiquiatra – narrada até de uma maneira muito engraçada — se transforma em mais uma daquelas partidas de raciocínio, a inseminar a dúvida sobre se os loucos são mesmo loucos, ou se quem diz a verdade (neste caso uma verdade apocalíptica de contornos Chomskianos) é tomado por louco.

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E, para dizer a verdade, Teolinda Gersão não precisa de alargar a escala. O mais interessante nos seus contos não é aquilo que as personagens pensam, mas aquilo que sentem. É bonito o primeiro conto, sobre um sem-abrigo que na sua juventude foi dador de esperma. É bonito pelo contraste entre a forma de pensar da juventude – concentrada na potência – e da velhice – centrada na memória; é bonito pela forma como uma vida que não corre como esperado se reavalia, e passa a olhar para um momento marginal como um grande feito, e é bonito até pelo amor e orgulho do velho Homem nos filhos que nunca conheceu, que não sabe sequer que existem.

Da mesma forma, é profundamente perturbadora a história de um divórcio civilizadíssimo em que, sem dramas, sem que haja sequer um verdadeiro momento de ruptura, sem que se diga uma única palavra sobre ele, se sente à distância de muitos anos o sofrimento de uma criança.

Teolinda Gersão tem um forte poder evocativo em espaços curtos, em cenas quotidianas, em acasos menores e na verdadeira alegria ou tristeza que eles podem trazer. Há um conto em que dois pais que não falam com um filho há anos, com um filho que se deu bem na cidade, preparam com todo o cuidado uma visita ao filho, uma visita que deverá sarar as mágoas antigas e mostrar o orgulho dos pais. No entanto, quando chegam a casa do filho, com as melhores roupas que se arranjaram na aldeia, até com algumas das roupas emprestadas, são tomados por palhaços contratados para uma festa de crianças. Toda a cena é comovente, e faz lembrar a relação do Homem com Deus.

Enquanto trata de alegria e de tristeza, ou de alguns dos seus temas mais comuns, como a ideia, tão explorada por Girard, de que a distância sacraliza, Teolinda Gersão dá-nos contos que merecem a leitura. Mais, os seus contos têm uma força pouco habitual neste género de histórias: quem foca pequenos lampejos de bondade ou de maldade, quem tem a destreza de fazer do comum o lugar dos grandes sentimentos, tem tendência a tratar esses repentes como momentos de viragem ou de conversão. O lado mais perturbador nos contos de Teolinda Gersão é que estes momentos são vividos mesmo como momentos, isto é como episódios que nos mostram que não basta a percepção da beleza para nos dedicarmos a ela. A vida tem uma carapaça muito mais dura e, às vezes, não é preciso nada para rejeitarmos aquilo que sabemos que é bom.