Foi uma passagem de testemunho tranquila entre Amadeu Guerra, sentado sentado na primeira fila como procurador-geral distrital de Lisboa, e Albano Morais Pinto, o seu sucessor à frente do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Morais Pinto não invocou uma única vez o nome de Amadeu Guerra mas perante uma sala cheia na Procuradoria-Geral da República fez questão de elogiar os resultados muitos positivos obtidos “nos últimos anos” e prometer uma linha de continuidade.

Se há palavra que resume o discurso de Morais Pinto é precisamente essa: continuidade. O novo diretor do DCIAP prometeu continuar o trabalho de combate à corrupção, fazendo mesmo questão de aludir indiretamente à Operação Marquês, a principal acusação do mandato de Amadeu Guerra, para defender os mega-processos e a utilização da prova indiciária, a chamada prova indirecta, como forma de combater a criminalidade económico-financeira. O que foi interpretado por fontes do Ministério Público como uma defesa do trabalho da equipa de procuradores liderada por Rosário Teixeira que assinou a acusação contra José Sócrates e os restantes arguidos.

“Não deixa de ser surpreendente que, de vez em quando, e apesar dos instrumentos internacionais que obrigam Portugal a aceitar como fundamental a esse tipo de prova [prova indiciária/indireta]” — como é o caso, por exemplo, “das Convenções de Mérida e Palermo” –, seja questionada a utilização desse tipo de prova no combate à criminalidade económica-financeira, “onde o poder e o dinheiro dos seus autores levam à sofisticação e camuflagem da sua prática, sempre na procura e ocultação do enriquecimento ilícito”, afirmou Albano Pinto. Para o novo diretor do DCIAP, o titular da ação penal tem a “obrigação” de lutar contra tal enriquecimento ilícito e, especialmente, “de congelar e fazer com que o seu produto reverta a favor do Estado”.

Citando o professor italiano Enrique Ferri, especialista em Direito Penal do início do séc. XX, Albano Morais Pinto afirmou que, se “o juiz tivesse de abster-se, mesmo quando a cadeia dos indícios leva, logicamente, a uma conclusão, a justiça penal poderia fechas as portas, porque nove vezes em cada dez, trata-se de processos indiciários.” Morais Pinto apoiou os chamados mega-processos porque o combate à corrupção faz-se com processos “por vezes, imprescindivelmente volumosos face, desde logo, à necessidade de estabelecer as bases dos juízos indiciários e, consequentemente, ao risco de, com a sua separação, poderem perder-se conexões que devem (…) permitir vermos mais do que vemos“.

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O procurador-geral adjunto defendeu igualmente que este tipo de investigações necessita de prazos alargados para ser desenvolvida. “É também uma ilusão pensar que muitos dos crimes técnicos, inclusive, formas de corrupção mais engenhosas possam ser investigados em curto de espaço de tempo, nomeadamente nos prazos previstos pelo Código de Processo Penal”, afirmou.

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Recorde-se que o juiz Ivo Rosa, o titular da fase de instrução criminal da Operação Marquês, é um dos mais ferozes adversários da utilização da prova indireta em processo penal. Não fazendo distinção entre processos de criminalidade comum — onde a prova direta (ADN, impressões digitais ou outras provas obtidas através da ciência forense) são banais — e os processos de criminalidade económico financeira — onde inexistem provas diretas e impera a lei do segredo entre corruptor e corrompido –, o juiz Ivo Rosa é conhecido por desvalorizar a utilização de prova indireta para condenar ou pronunciar arguidos para julgamento.

O centro nevrálgico da acusação da Operação Marquês contra José Sócrates e Carlos Santos Silva assenta essencialmente em prova indireta que permite sustentar, de acordo com o Ministério Público, que Santos Silva é um mero testa-de-ferro do ex-primeiro-ministro, logo os mais de 30 milhões de euros que foram  descobertos nas contas bancárias tituladas por aquele em Portugal e na Suíça pertencerão, na realidade, a Sócrates. As palavras de Morais Pinto foram vistas por diversas fontes do Ministério Público como uma defesa do trabalho da equipa de Rosário Teixeira e um recado para o juiz Ivo Rosa.

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O novo diretor do DCIAP classificou ainda como “inquestionáveis” os resultados alcançados nos últimos anos naquele departamento, fruto do “trabalho elevado e profícuo” dos seus antecessores. “Conseguiram, e bem, vincar a mensagem que o Ministério Público persegue o crime, nomeadamente económico e financeiro sem atender à qualidade ou condição dos autores e dos cúmplices. Assim sempre foi e assim continuará a ser”, disse Albano Morais Pinto.

A cerimónia de tomada de posse iniciou-se com um discurso curto da procuradora-geral da República, no qual Lucília Gago voltou a enfatizar o trabalho levado a cabo durante os dois mandatos de Amadeu Guerra, repetindo o seu compromisso com o “combate à criminalidade económico-financeira” que deve “prosseguir e revestir um cunho de maior acuidade e eficácia pela singela constatação de que estamos longe de nele obter vencimento”.