A informação foi escrita pela mão do próprio militar. No processo de averiguações interno que o Exército instaurou no início de julho de 2017 (logo após o furto aos paióis de Tancos), o oficial de dia, destacado para a segurança aos Paióis Nacionais de Tancos no momento em que se dá o assalto, alegou não conhecer as regras aplicadas pelo Regimento de Engenharia 1 (RE1) para garantir segurança ao perímetro e aos edifícios onde estavam guardados granadas, explosivos e outro material de guerra. Grave? “Para desempenhar o serviço, temos de conhecer normas, é grave não se conhecerem normas”, admitiu o coronel João Paulo de Almeida, comandante do RE1 no momento do furto, ouvido esta quarta-feira na comissão de inquérito parlamentar.

A expectativa à volta da audição do antigo comandante era muita. Afinal, era ele quem comandava o Regimento de Engenharia 1 em junho de 2017, o mês em que houve uma intrusão nos paióis que acabaria por resultar num dos maiores furtos da história militar portuguesa. Desapareceram explosivos, granadas, detonadores e outro material de guerra — e desapareceram, precisamente, dos paióis atribuídos ao regimento de Paulo de Almeida.

Tinha passado cerca de uma hora e meia desde o início da audição e já o deputado do CDS António Carlos Monteiro desenhava círculos no ar enquanto desabafava para o outro lado da sala: “Está fechado”. Entenda-se, sendo o mais comprometido dos militares envolvidos no caso, o militar não ia baixar a guarda.

O depoimento do coronel voltou repetidas vezes ao mesmo argumento: sabia que as instalações tinham fragilidades — eram, aliás, “alvo de preocupação” do comandante —, como também sabia que os militares não tinham um jipe que lhes permitisse fazer a ronda aos 40 hectares dos paióis — dava-se “privilégio” a rondas apeadas, mas não há conclusão a retirar daí. “Em termos de causa efeito, não consigo fazer esse relacionamento” entre as falhas reconhecidas e o furto, disse o militar.

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Oficiais que não conhecem as regras, os Mercedes azuis e a revista a todos os carros

Houve, no entanto, um dado que pareceu surpreender o coronel, quando o mesmo deputado partilhou a informação do processo de averiguações do Exército: o “oficial de dia não conhecia regras e não sabia que estavam afixadas”, referiu o centrista, depois de o Parlamento ter recebido um conjunto de documentos relacionadas com a investigação ao furto. O oficial de dia “tem a obrigação de conhecer as Normas de Execução Permanente”, respondeu o militar. “Não compreendo que não conhecesse estas normas” e, “sim, para desempenhar serviço temos de conhecer normas, é grave não se conhecerem normas”, admitiu o antigo comandante do Regimento de Engenharia 1.

António Carlos Monteiro ainda questionou sobre a permanência de seis, e não oito, militares na segurança aos paióis. “O detalhe da ação de segurança no interior dos Paióis Nacionais de Tancos é do comandante da guarda aos paióis” e é ele quem “tem de avaliar, em cada momento quem pode ou não pode dispensar para o almoço”. A pergunta referia-se, no entanto, ao período da noite. Aliás, os processos de averiguações confirmam a informação de que os militares encaravam o destacamento para aquela missão como tratando-se de um “serviço em que era para dormir” — isso mesmo foi dito por cinco militares do RE1 ouvidos no processo de averiguações. O militar contestou essa informação: “Não eram seis, eram oito. Houve uma ausência de duas horas, mas de tarde”, garantiu.

A audição trouxe, no entanto, outras revelações — e algumas confirmações de dados que já tinham vindo a público durante a investigação ao furto.

Durante a segunda ronda de perguntas ao coronel, o deputado do PS Ricardo Bexiga revelou a facilidade com que civis entravam e saíam daquelas instalações. Antes do furto, contou o socialista, reportando-se a dados dos processos de averiguações internos, entraram no interior dos paióis “dois Mercedes azuis, um deles conduzido por um mulher que não foi identificada e que, ainda hoje, ninguém sabe quem era”. E perguntava-se: “Será que as armas não iam nesses carros?”

Na resposta, o coronel João Paulo de Almeida explica que os carros estiveram apenas “na zona administrativa dos paióis, não entraram nos paióis”. E acrescenta, de memória, que leu no processo de averiguações o relato de uma discussão entre os seus homens e os civis em causa, precisamente porque estariam a ser identificados. “São os únicos que fazem isto”, terão respondido os civis, de acordo com o coronel. Ou seja, seria habitual entrarem pessoas naquela zona militar sem nunca serem identificadas.

Outro episódio relacionado com os carros que andavam pelos paióis. Ricardo Bexiga revelou que, logo após ter sido detetado o desaparecimento do material guardado nas instalações, “o comandante manda revistar todos os carros”. E volta a questionar-se: “Já tinham ocorrido outras situações de furto” que explicassem essa medida?

Condições dos paióis eram “alvo de preocupação”

No início de uma audição que se estendeu para lá das três horas e meia, o antigo comandante explicou o que o preocupava nas instalações, desde que, em julho de 2016, assumiu a missão repartida pela segurança dos edifícios.

“As condições físicas relativas à segurança” eram o principal fator de preocupação, revelou. As duas redes que rodeavam o perímetro dos paióis, separados por cinco metros, “estavam em muito mau estado, havendo vários locais em que estavam corroídas”. Havia também torres de vigia “em mau estado”. E os meios complementares — sensores de pressão e de movimento — simplesmente não existiam. “No momento em que assumo o comando, os componentes físicos das instalações dos paióis eram alvo de preocupação”, resume o militar.

Foi disso que deu conta aos superiores, como já tinham admitido ter feito os vários comandantes que passaram pela comissão de inquérito nas duas últimas semanas. As preocupações e as fragilidades detetadas foram passados para o papel e esses relatórios chegaram aos superiores hierárquicos e, em última análise, ao Comando das Forças Terrestres, que supervisionava aquelas instalações.

O coronel também foi confrontado com o tempo que passou entre a última ronda antes de o assalto ter sido detetado e a ronda em que os militares dão conta de que havia três paióis com as portas abertas e percebem que teria havido uma intrusão nos paióis.

Vinte horas entre uma e outra ronda, é demasiado tempo? “É”, assume o militar, depois de garantir desconhecimento sobre momento em que o assalto foi concretizado. “Estima-se um período, mas em rigor não sei quando foi feito o assalto, estima-se que terá sido na noite de 27 para 28” de junho de 2017, disse. Nas averiguações internas, vários militares do Regimento de Engenharia 1 assumiram que, a cada 24 horas, não eram feitas mais de três rondas aos paióis.

O coronel João Paulo de Almeida referiu aos deputados que, não havendo um “intervalo rígido” entre cada ronda, “a indicação é para fazer o maior número de rondas” pelo perímetro. Mas admite que “há um facto que é inegável: o RE1 tinha a missão de garantir a segurança daqueles paióis durante um mês”. E depois a conclusão: “Não cumprimos a missão a 100%, isso é um facto.”