Se “Green Book — Um Guia para a Vida”, de Peter Farrelly, tivesse sido realizado nos anos 60 em que se passa (e de onde parece ter saído), teria a assinatura de um cineasta de sensibilidade “liberal” como Stanley Kramer, e seria interpretado por Sidney Poitier e Tony Curtis. Este filme sobre o problema racial nos EUA, ambientado há mais de meio século, durante a presidência de John Kennedy e em plena efervescência do Movimento pelos Direitos Civis dos negros americanos, mas cuja mensagem é dirigida aos EUA de hoje, está nos antípodas das fitas de Spike Lee sobre o mesmo tema. Onde estas são azedas, agressivas e ressabiadas, “Green Book — Um Guia para a Vida” mostra-se moderado, tolerante, conciliador, positivo. É um “Obama movie” em plena era de Donald Trump e de “BlacKkKlansman”.

[Veja o “trailer” de “Green Book-Um Guia para a Vida”]

O título do filme vem do livro The Negro Motorist Green Book, editado por Victor Hugo Green entre 1936 e 1966. Era um guia que ajudava os viajantes negros, na era da discriminação racial nos EUA, sobretudo nos estados do Sul, a encontrar restaurantes, alojamentos e locais de diversão onde não fossem segregados. E baseia-se num facto real: em 1962, o culto e sofisticado pianista negro Don Shirley (Mahersahla Ali) foi em digressão com o seu trio ao Sul dos EUA. E levou consigo, como motorista e guarda-costas, o vivaço e desembaraçado Tony “Lip” Vallelonga (Viggo Mortensen), um italo-americano da Bronx que trabalhava como “segurança” em clubes noturnos (“Estou em relações públicas,” como ele diz a certa altura) e se encontrava desempregado.

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[Veja a entrevista com o realizador Peter Farrelly]

O filme inverte a premissa de “Miss Daisy”, de Bruce Beresford. Aqui, o branco é o motorista do negro, e seu inferior em educação, cultura e capacidades sociais. Mas é também o seu protetor, já que o sobredotado e erudito Shirley, que mora em Nova Iorque, por cima do Carnegie Hall, tem pouca experiência do mundo real e vive equidistante do mundo dos negros (que o estranha pela sua excecionalidade e o aceita mal) e o dos brancos (que o encara como uma curiosidade e o tolera pelo seu talento). E lá vão os dois estrada fora, de concerto em concerto, com Shirley a ser exposto a humilhações raciais várias, e à lhaneza e ao desbocamento de Tony, mas também a aprender uma coisas com este sobre a vida e as pessoas; e Tony a ser admoestado e corrigido no modo de ser e na linguagem por Shirley, mas a ser gradualmente “polido” por ele e a ter mais noção dos seus preconceitos.

[Veja a entrevista com Viggo Mortensen]

“Green Book — Um Guia para a Vida” é uma amálgama de “road movie”, “buddy movie” e filme anti-racista “feel good”, muito sincero e direto nas suas boas intenções, na sua mensagem de tolerância, moderação e convívio interracial, e no elogio que faz àquilo que pessoas diferentes (na cor da pele, mas também na origem social, nas faculdades intelectuais, na experiência do mundo) podem dar uma à outra. E tanto remete, no registo e no discurso, para as fitas mais emblemáticas deste tipo feitas nos anos 60, como “No Calor da Noite”, de Norman Jewison, ou “Adivinha Quem Vem Jantar”, de Stanley Kramer, como para as comédias inofensivas que a dupla formada por Gene Wilder e Richard Pryor protagonizou entre os anos 70 e 90.

[Veja a entrevista com Mahershala Ali]

A grande  vulnerabilidade deste filme de Peter Farrely, conhecido pelas comédias alarves e politicamente incorretas que fez com o irmão Bobby (“Doidos à Solta”, “Doidos por Mary”), é a previsibilidade, juntamente com o afã demonstrativo e diligente de quem quer dar uma lição muito bem explicada. “Green Book — Um Guia para a Vida” passa o tempo a telegrafar por antecedência tudo o que vai acontecer no enredo. Adivinhamos antecipadamente como se vão comportar as personagens, o que lhes vai suceder e o que irá mudar nelas, e até o final convencionalmente “caloroso” é topado à distância. E como a jornada é longa, acaba por se tornar condescendente, enfadonha e didática. Pese embora a boa companhia de Mahersala Ali no afetado mas secretamente angustiado Don Shirley, e de Viggo Mortensen no bronco mas genuíno Tony “Lip”.

E como a realidade é uma desmancha-prazeres, a família de Don Shirley desmentiu que, ao contrário do que se afirma no final do filme, Shirley e Tony Vallelonga tenham ficado amigos até à morte de ambos, em 2003. Mas o cinema também existe para a tornar menos dececionante.