Num atelier de joalharia pode ser estranho admitir que a prata da casa são folhas secas, postais antigos e cadernos com recortes a saírem das páginas, mas no caso de Juliana Bezerra é verdade. Quem entra na sua oficina no Páteo Bagatela, em Lisboa, encontra um mundo de gavetinhas tão cheias de anéis como de recordações de viagens, frascos com conchas, cogumelos secos que parecem corais (e corais mesmo), livros de botânica com ilustração científica e até palmeiras guardadas dentro de molduras, como obras de arte.

Conhecida pelas peças naturalistas, a joalheira de 37 anos decidiu abrir as portas para a rua em 2015, embora nessa altura fosse, admite, “uma abertura tímida”. “No início tinha receio, parecia que estava nua. Ter as pessoas a olhar e a entrar era muita informação. Agora já nos habituámos a ter a porta aberta e até me arrependo de ter feito uma das montras em vidro fosco.”

Lá dentro o espaço não é muito mas cada gavetinha conta. De um lado está a bancada de trabalho onde tem ajuda de outra pessoa, do outro uma mesa para as provas e o atendimento ao público. Tirando as gravações e os banhos de ouro, tudo acontece aqui, no meio de flores que vão ficando porque a designer não as consegue deitar fora, alicates alinhados num arame, frasquinhos e jarras dispostos em prateleiras, caixas cheias de conchas e até um busto de Fernando Pessoa. “É uma confusão, mas às vezes a forma das peças surge daqui, desta junção”, diz a brasileira que há 14 anos trocou o país de origem por Lisboa e o ramo de hotelaria pela joalharia de autor.

Juliana Bezerra na bancada de trabalho, aberta para a loja. © Gonçalo F. Santos

“A inspiração do meu trabalho é muito orgânica e vem da natureza, mas não é só isso”, resume Juliana, dando como exemplo a coleção Margaritari, onde criou uns brincos a partir de uma pintura da rainha Carlota Joaquina. Olhar para o que a rodeia é uma forma de perceber o que pode estar entre um pedaço de prata em bruto e uma joia delicada. Com um armário de guardar queijos à mistura.

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O trabalho de Juliana Bezerra em imagens

© Gonçalo F. Santos

As viagens são uma inspiração assumida e é habitual Juliana Bezerra vir com folhas e outros elementos naturais dos sítios que visita, sobretudo se forem tão ricos como o Vietname (que inspirou a coleção Glória da Manhã) ou as Seychelles. A joalheira visitou o arquipélago no início de 2018 e não se limitou a secar as folhas que trouxe na mala. No caso de uma palmeira, colocou-a numa moldura de vidro e usou a mesma textura num par de brincos da coleção lançada no outono e a que chamou D’Argent. “Isto só Deus faz, é uma loucura.”

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Para fazer peças tão delicadas, na verdade são precisas várias ferramentas robustas. A começar pela armação de serra, assim chamada por causa da sua estrutura retangular: “É a primeira ferramenta com que temos contacto e que usamos para cortar as peças que queremos trabalhar. É como se fosse a nossa tesoura”, explica Juliana. A que tem no atelier é a mesma que usou na escola de joalheiros Contacto Directo, em Lisboa, e comprou-a em 2005, um ano depois de se mudar para Portugal.

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Para além dos alicates, martelos, pinças e da pedra de soldar, outra das ferramentas que a designer mais usa é o tornilho de madeira. Parece uma pinça gorda e tosca mas serve para segurar peças pequenas com precisão, para serem serradas ou trabalhadas. É uma espécie de segunda mão, ainda mais essencial desde que a joalheira ficou com uma tendinite, habitual na profissão.

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A coleção de postais de botânica ilustrados por Katie Scott faz parte dos tesouros de Juliana Bezerra, que se diz apaixonada por ilustração científica. Na coleção Jardinista há mesmo um par de brincos que foi inspirado nesta imagem de cogumelos cantarelos.

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Num placard de cortiça pendurado na parede estão as “inspirações permanentes” de vários cantos do mundo: um retrato de Picasso a preto e branco, com a famosa camisola breton (“adoro-o, não necessariamente o trabalho mas a figura”, diz Juliana); a pintora modernista Tarsila do Amaral, “uma espécie de musa”; índios e ocidentais que têm em comum terem sido fotografados com brincos grandes, “uma peça de joalharia favorita”; flores das Seychelles que foram recortadas de guardanapos e até um pormenor dos desenhos dos barros de Nisa.

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Antes de pegar na serra e nos alicates, Juliana Bezerra agarra no lápis de carvão para fazer esboços ou até mesmo decalques das formas orgânicas que quer recriar nas peças. Os muitos papelinhos e recortes que vai reunindo para cada coleção são depois organizados em cadernos onde a designer aponta também o nome científico de cada espécie (que pode vir, ou não, a batizar a própria peça). Teoricamente, cada coleção tem um álbum — “alguns já estão acabados, outros ainda estão por organizar”.

Mãe pela primeira vez há sete meses, a designer de joias acaba de lançar uma coleção inspirada na filha Clara. Como um dos apelidos da bebé é Estrela, uma das primeiras ideias a surgir foi aproveitar a forma da carambola, um fruto exótico também conhecido como star fruit. Não é por isso de estranhar que haja carambolas secas numa caixa ao lado da mesa de trabalho, estrategicamente guardadas numa concha que foi oferecida à bebé. “É uma coleção mais lúdica e feliz, também inspirada na cor amarela.” Chama-se, simplesmente, Clara.

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Algumas das ferramentas são usadas como decoração, ao lado de arranjos de flores. É o caso da adrasta mecânica e do laminador dispostos numa mesa logo à entrada. A primeira serve para colocar a medida do anel, o segundo faz chapa e fio. Mesmo ao lado, um móvel cheio de gavetas guarda as peças por entregar e o stock. Aí fica também parte da coleção de postais de Juliana, guardada numa caixa de madeira comprada em Portobello.

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E o que faz um armário de guardar queijos no meio de tantas joias? Simples: pendurado na parede, guarda as catrabuchas e outras escovas de polir, essenciais para o trabalho de Juliana Bezerra, que normalmente é acetinado. O armário foi comprado numa loja de velharias no Alentejo, apesar (ou por causa) da sua anterior função. “Gosto de comprar coisas que têm história, ou pelo menos de inventar uma história para elas.”

© Gonçalo F. Santos

Artigo publicado originalmente na revista Observador Lifestyle nº 3 (novembro de 2018).