A melancolia é uma matéria difícil de trabalhar e é fácil perceber porquê: porque cada um tem a sua e não há uma que seja mais importante, nem a minha nem a tua. É um valor absolutamente relativo e, por isso, quando alguém decide pegar no conceito para o transformar numa coisa concreta, pode correr muito bem, pode correr muito mal ou pode correr médio. No caso dos Beirut, já correu muito bem. Nunca correu muito mal. Mas há já bastante tempo que corre médio. E, com um novo disco, não há novidade nesse departamento.

Zach Condon, o rapaz que controla tudo o que leva a assinatura “Beirut”, apareceu em 2006 e o trabalho saiu-lhe bem porque conseguiu mostrar o quão mal a vida lhe corria com enorme sentimento, astúcia de compositor e artes de boa cantiga. Ou então, mesmo que não fosse esse o caso, conseguia enganar quem o ouvia. Uma voz arrastada e sofrida, vinte aninhos e a rouquidão de quem já tinha passado demasiadas noites vazias com o copo cheio. E aquele toque de fantasia que também têm os jogadores bons de bola: fazer muito com pouco. Dois, três, no máximo quatro acordes enrolados sobre eles próprios, um bandolim, uns metais solitários e a tristeza que se espera de um tipo que cruza o que ouviu dos grupos de mariachis com o folclore dos balcãs.

A capa de “Gallipoli” (edição 4AD; Popstock a 1 de fevereiro)

Foi uma ideia de génio, mas seria preciso ser sempre genialmente criativo para fazer render o formato. Zach Condon foi sempre honesto, nunca tentou ludibriar ninguém. E com este novo Gallipoli também não quer entrar nesse jogo. Quem se fizer à partida sabe o que vai encontrar. O disco é um abrigo, cai bem com isto de janeiro a caminhar para fevereiro, tem um quentinho bom vindo de terras onde faz mais calor mas é claramente um conjunto de cantigas atiradas ao início do ano no hemisfério norte. Tem aquela cadência previsível de um disco de Beirut, com os ingredientes de sempre mais umas percussões quando a carga dramática assim exige, tem o piano a fazer a caminha para o restante suporte musical que ampara a voz de Condon: arrastada, sempre no mesmo tom, porque a vida também se arrasta e uma metáfora puxa a outra e isto nunca acaba. O homem canta como se estivesse a fazer uma prece a uns deuses que não lhe ligam nenhuma. E isso, naturalmente, faz sentido no quotidiano de muito boa gente.

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[“Gallipoli”:]

Nada contra: esta aparente apatia foi muitas vezes o segredo das canções do amigo Zach. No meio de linhas melódicas previsíveis e relativamente infantis, o desvio certo tinha o mesmo efeito que um estaladão de sol provoca quando só há nuvens por toda a parte: um gajo levanta as orelhas e tenta perceber “mas que raio se está a passar” e, em princípio, fica contente. Mesmo que não saiba porquê, solta um sorriso meio escondido, porque não o controla. E assim, de forma tão simples, há uns curtos segundos durante os quais está tudo bem. Ainda para mais quando o tema abordado por Condon é quase sempre o que já lá vai e não volta, o “devia ter feito mas não fiz”, o “que bom que era mas agora acabou” e, portanto, “deixa-me sair daqui sem destino a ver isto passa, ainda que eu saiba que não passa, não”.

[“Landslide”:]

Gallipoli tem tudo isto. Tem mesmo, outra vez, não falta nada, tem até com mais barulho e mais confusão, mais arranjos, mais vozes, mais instrumentos. Às vezes, várias vezes, tem elementos destes a mais: continuando na onda do jogo da bola (sabe-se lá porquê), aqui e ali há demasiado brinca na areia, a partida não avança, fica tudo preso no meio campo, não se chega longe, o desafio acaba e nem demos por ele. Porque, convenhamos, tudo isto já nós tínhamos de sobra. Este é o sexto álbum de Beirut e não era preciso chegar ao disco número 6 para percebermos que é esta a realidade por aqui. Na verdade, bastou-nos o primeiro Gulag Orkestar. E, ao mesmo tempo que esse disco de 2006 ainda pode rodar com a mesma garantia de qualidade, o facto matemático é que tudo isso está de tal maneira distante que, em tempos, os Beirut chegaram a tocar no festival Sudoeste.

[“Corfu”:]

“Elephant Gun” e “Postcards From Italy”. Estas duas canções tinham e continuam a ter algo de extraordinário. São brilhantes na forma como servem de cápsula perfeita para um sentimento, um momento na vida de alguém. E na forma como se deixam apropriar por todos quantos as ouvem, mesmo que esses pares de ouvidos estejam em tudo distantes de quem as fez e dos motivos que as geraram. Esta tende a ser a magia de uma boa canção. E é essa magia que continuamente procuramos num novo disco de Beirut. A tal que teima em não se revelar, pelo menos não da mesma maneira, nunca mais assim aconteceu. E não é com Gallipoli que a coisa vai mudar.