Já vai com sete dias de atraso — e isso diz muito sobre o que aqui está em causa. Donald Trump vai fazer na madrugada desta quarta-feira (02h00, hora de Lisboa) o seu segundo discurso do Estado da União, naquele que é provavelmente um dos pontos mais baixos da sua governação.

Depois de uma disputa em torno da imigração e da construção do muro com o México ter levado ao shutdown parcial de 35 dias, o mais longo da História dos EUA, o ambiente da política norte-americana está, ao contrário de várias cidades do país, a escaldar.

A par disso, a popularidade de Donald Trump atravessa um momento particularmente baixo. Na sondagem do Washington Post com a ABC, baseada em entrevistas feitas na altura em que o shutdown atingiu um mês de duração, 56% dos inquiridos disseram que “definitivamente não vão votar” em Donald Trump em 2020, ao passo que apenas 28% respondiam que vão “definitivamente” votar nele. De acordo com o FiveThirtyEight, site especializado em jornalismo de dados e em eleições, a taxa de rejeição em relação a Donald Trump na média das sondagens é hoje 10 pontos acima do período análogo para Barack Obama.

Donald Trump pode ter aqui uma oportunidade para reverter os seus maus números — mas isso vai depender da maneira como o seu discurso decorrer, que temas quiser levantar e o tom escolhido para abordá-los.

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Perante uma Câmara dos Representantes que já não está do seu lado — nas eleições intercalares de novembro de 2018, os democratas retomaram o controlo daquela câmara após oito anos de maioria republicana —, Donald Trump tem nas suas mãos optar pela via da conciliação ou pelo caminho do confronto. Ou, como escreveu o Politico, Donald Trump terá de escolher entre a sua versão Twitter e a sua versão teleponto.

De acordo com os relatos feitos a diferentes órgãos de comunicação social norte-americanos pela Casa Branca, Donald Trump irá mostrar a sua faceta teleponto. Ou seja, mais calmo, diplomático e com poucas fugas ao guião.

De acordo com a NPR, que teve acesso a um excerto do discurso, Donald Trump dirá algo como: “Juntos, podemos quebrar décadas de bloqueio político. Podemos construir pontes sobre antigas divisões, curar velhas feridas, construir novas coligações, forjar novas soluções e desbloquear a extraordinária promessa do futuro da América. A decisão cabe-nos a nós”.

Nas próximas linhas, abordamos alguns dos temas que Donald Trump deverá puxar para o seu discurso.

Muro. Quebrar barreiras ou erguê-las?

(MANDEL NGAN/AFP/Getty Images)

shutdown parcial não está terminado — está apenas suspenso até 15 de fevereiro. Em dezembro, Donald Trump deixou de promulgar leis de despesa para agências estatais, em resposta à recusa democrata de financiar o muro com México. A recusa durou até hoje, com os democratas a não darem quaisquer sinais de estarem dispostos a fazer cedências nesta matéria.

Pelo meio, Donald Trump tem dado a entender que pode recorrer à declaração de Estado de emergência — alegando que a inexistência de um muro ao longo da totalidade da fronteira com o México põe em causa a segurança nacional — e utilizar fundos do Departamento de Defesa (e recorrendo a mão de obra militar) para erguer uma barreira a Sul.

Na sexta-feira, Donald Trump deixou essa questão no ar em resposta às perguntas de jornalistas. “Não vou dizer. Mas vão ouvir tudo no [discurso do] Estado da União e depois vêem o que acontece logo a seguir ao Estado da União”, disse. Quando lhe perguntaram especificamente sobre a possibilidade de declarar o Estado de emergência durante o discurso, disse:

“Há uma boa probabilidade de termos de fazer isso. Mas nós vamos ter de construir o muro e apesar disso já estamos a fazê-lo. Já estamos a construir muito muro, mas dessa forma podemos fazê-lo muito mais depressa”.

Seja como for, olhando para a lista de convidados da primeira dama, Melania Trump, para o discurso, é possível antever que o Presidente dos EUA vai insistir na correlação entre crime e imigração ilegal, uma vez que convidou familiares de Gerald e Sharon David, casal idoso que foi morto em casa por um imigrante ilegal do El Salvador.

Divulgados os convidados de Melania Trump para o “State of Union”

Aborto. Um tema de sempre para reforçar a base de sempre

(BRENDAN SMIALOWSKI/AFP/Getty Images)

O discurso do Estado da União, pela sua natureza, toca em vários temas. E, neste, Donald Trump deverá escolher o do aborto, onde, marcando a sua oposição à interrupção voluntária da gravidez, o Presidente dos EUA pode marcar pontos entre a sua base de apoio eleitoral.

De acordo com o o Politico, Donald Trump vai aproveitar o facto de a nova lei para o aborto do estado de Nova Iorque ter entrado em vigor (passou a ser legal abortar até às 24 semanas, ou seja, seis meses de gestação, por razões de saúde) para marcar a sua posição pró-vida — apesar de, quando ainda era apenas uma estrela do imobiliário e da televisão, ter dito que era pró-escolha mesmo tendo “ódio ao conceito do aborto”.

É precisamente por essa mudança de ideias ser regularmente referida que Donald Trump vai tentar, de uma vez por todas, estabelecer que é contra a interrupção voluntária da gravidez. Foi nesse sentido que apontou uma fonte republicana próxima da Casa Branca em declarações ao Politico: “O Presidente quer reafirmar o seu compromisso com os temas pró-vida”.

Política Externa. Que voos para a águia?

(MANDEL NGAN/AFP/Getty Images)

Há 17 anos, a Internet ainda não era uma realidade acessível a tantos, a inteligência dos telemóveis só ia até ao ponto de terem toques polifónico e, com jeito, uma disquete chegava para armazenar uma vida de trabalho. No entanto, e voltando para o que aqui interessa, há 17 anos os EUA já tinham militares no Afeganistão.

Este é a segunda intervenção externa mais longa dos EUA, perdendo apenas para os quase 20 anos da guerra do Vietname. Neste momento, há praticamente 17 mil soldados da NATO no Afeganistão, oriundos de 39 países — inclusive de Portugal, que ali tem 193 militares. No entanto, nenhum país tem lá tantos militares como os EUA, que a esta altura conta 8475 soldados em solo afegão.

É possível que Donald Trump se baseie nestes números — e noutro ainda, que indica que os EUA gastam 700 mil milhões de dólares (613 mil milhões de euros) por ano com o seu exército — para defender uma retirada do Afeganistão. A ajudar a esse desfecho, está o aparente — mas ainda assim incipiente — progresso das conversações entre os enviado dos EUA para as negociações de paz no Afeganistão, Zalmay Khalilzad, e os talibãs.

Depois, há também a presença norte-americana na Síria, com cerca de 2500 soldados a lutar ao lado das forças curdas do YPG. Donald Trump já anunciou a retirada daqueles militares, referindo que o Estado Islâmico, cujo combate seria o objetivo principal dos EUA na Síria, já está perto do fim. “Derrotámos o Estado Islâmico na Síria, que era a única razão para ali estarmos durante a presidência Trump”, escreveu no Twitter a 19 de dezembro. Pouco depois, surgiu o anúncio da retirada — e, também não muito depois, o secretário de Defesa, Jim Mattis, demitiu-se em desentendimento com o Presidente.

Embora Donald Trump pareça estar já de ideias feitas quanto à retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão e da Síria, o mesmo não se pode dizer quanto ao Senado, seja entre democratas ou republicanos. A 31 de janeiro, a retirada daqueles dois países foi chumbada no Senado com 68 votos contra a medida defendida por Donald Trump e apenas 23 a favor.

Além disso, Marco Rubio, senador da Flórida que chegou a defrontar Donald Trump nas primárias republicanas de 2016, vai apresentar esta terça-feira um pacote legislativo que procura “fortalecer” a segurança dos EUA no Médio Oriente — e isso passa não só por uma cooperação ainda mais estreita com Israel, como pela continuação das missões no Afeganistão e na Síria.

Outro tema que pode ser referido por Donald Trump — ainda que apenas de passagem, por estar em constante evolução — é a Venezuela. O reconhecimento norte-americano de Juan Guaidó como Presidente legítimo da Venezuela serviu de alavanca para o acelerar da crise venezuelana, deixando Nicolás Maduro sem pé — e receitas de petróleo — à medida que mais países, Portugal incluído, reconheceram também o poder do seu rival para convocar novas eleições presidenciais.

Finalmente, a Coreia do Norte. A cimeira de Donald Trump com Kim Jong-un em Singapura, a junho de 2018, foi um dos acontecimentos mais importantes na política internacional do ano passado —, mas resta saber com que resultados e consequências. Se por um lado a acalmia norte-coreana parece evidente — os testes de lançamento desapareceram por completo em 2018, o que levou Donald Trump a dizer que “já não existe uma ameaça nuclear da Coreia do Norte” — também é certo que num relatório da National Intelligence é referida “atividade não condizente com uma total desnuclearização”. Enquanto isso, Donald Trump vai voltar a encontrar-se com Kim Jong-Un, num local a designar, no final deste mês.

Economia. O ponto de honra (e ouro) de Donald Trump

(JEWEL SAMAD/AFP/Getty Images)

Trump herdou uma economia em crescimento de Barack Obama e, desde que é Presidente, nunca a deixou cair. De acordo com o Bureau of Economic Analysis, no terceiro trimestre de 2018 a economia dos EUA cresceu 3,4%, isto depois de no segundo trimestre o crescimento ter chegado aos 4,2%.

O desemprego em janeiro foi registado nos 4%. Por mais baixa que seja, esta percentagem subiu 0,1% em relação ao mês em parte como consequência do shutdown, que custou 11 mil milhões de dólares (9,6 mil milhões de euros) à economia dos EUA — mais do dobro dos 5,7 mil milhões de dólares que o Presidente exige aos democratas para construir o muro.

Na economia, Donald Trump tem o ponto de honra de ter baixado, ainda em novembro de 2017, os impostos de forma generalizada — com o maior corte a caber às empresas. Não é, pois, por acaso, que entre os convidados de Melania Trump para o Estado da União esteja Roy James, gerente de uma fábrica de madeiras em Vicksburg, Mississippi, que fechou — mas que conseguiu reabrir portas ao beneficiar do estatuto de “zona de oportunidade”, previsto na lei de redução fiscal..

Rússia. O elefante na sala tem nome de Mueller

(SAUL LOEB/AFP/Getty Images)

Ainda Donald Trump não era Presidente, já a sua equipa de campanha estava a ser investigada por eventuais ligações à Rússia, tal como o cenário de uma tentativa de influência do Kremlin nas eleições presidenciais de 2016 era um dado adquirido para as diferentes agências de informação dos EUA. Porém, desde então, muito avançou — e o último ano foi pródigo em acontecimentos.

Vai começar o cerco a Trump — e é com estes casos que os democratas vão apertá-lo

Desde a última vez que Donald Trump fez o seu discurso do Estado da União, já foram condenados várias pessoas da sua entourage em 2016: o diretor de campanha Paul Manafort; o advogado pessoal, Michael Cohen; o conselheiro de política internacional, George Papadopoulos. Mais recentemente, em janeiro de 2019, foi detido e indiciado Roger Stone, homem que funcionou como conselheiro informal de Donald Trump ao longo da sua campanha. Foram todos investigados pela equipa de investigação de Robert Mueller, o ex-diretor do FBI que foi designado para procurador extraordinário, com a única missão de investigar o alegado conluio entre o Kremlin e campanha de Donald Trump.

Trump tem negado quaisquer ligações da sua equipa de campanha à Rússia, repetindo que nada disto passa de uma “caça às bruxas”. Já o seu advogado, o ex-mayor de Nova Iorque Rudy Giuliani, tem sido titubeante na sua defesa. Numa entrevista em direto à CNN, afirmou que “nunca disse que não tinha havido conluio entre pessoas da campanha”, para realçar que não teria havido conluio diretamente com Donald Trump.

Esta não é a primeira vez que um Presidente dos EUA faz um discurso do Estado da União ao mesmo tempo que decorre uma investigação em seu torno. Na História recente daquele país, o mesmo aconteceu com Richard Nixon, a propósito do Watergate, e com Bill Clinton, que enfrentou um impeachment em pleno escândalo Lewinsky.

Cada um deles reagiu de forma diferente quando fizeram os seus discurso de Estado da União. Richard Nixon decidiu falar do elefante na sala e disse: “Penso que chegou a altura de pôr um fim nesta e noutras investigações sobre este tema. Um Watergate já é bastante”. Já Bill Clinton, em 1999, ignorou por completo o escândalo Lewinsky e o impeachment que aquela mesma câmara, com maioria republicana, tinha aprovado.