Os vencedores Childish Gambino e Kacey Musgraves

Foram os dois grandes vencedores da noite: Kacey Musgraves porque levou para casa a estatueta de “Melhor Álbum do Ano”, Childish Gambino porque conquistou, à distância (não estava na arena Staples Center, em Los Angeles, para assistir à cerimónia de entrega dos prémios), a primeira vitória de sempre de um tema de rap na categoria “Melhor Canção do Ano”.

Nem Drake nem Kendrick Lamar. Os grandes vencedores dos Grammys chamam-se Kacey Musgraves e Childish Gambino

A apresentadora Alicia Keys

Nos últimos dois anos o apresentador da cerimónia dos Grammys tinha sido o comediante e apresentador britânico James Corden. Este ano, a escolhida foi Alicia Keys, que se manteve sóbria, apresentando os convidados e os protagonistas da noite com conhecimento.

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Disse que a música “é o que todos amamos, aquilo que nos faz chorar, marchar, festejar e fazer amor, é a nossa linguagem global partilhada” e ainda cantou um medley de canções que “gostava de ter escrito”.

Alicia Keys substituiu este ano James Corden como apresentador(a) da cerimónia de entrega dos prémios Grammy. (@ Kevork Djansezian/Getty Images)

Os discursos

Não é fácil sair do guião habitual — a lista interminável de agradecimentos, a manifestação da surpresa em vencer um prémio, a mais simples expressão de crença num futuro melhor e num mundo mais bonito –, pelo que Drake e Lady Gaga merecem nota extra entre os convidados da noite.

Drake fez provavelmente o discurso mais incendiário e provocador da noite, aproveitando a possibilidade de discursar nos Grammys para desvalorizar a importância de vencer prémios para se ser bom artista:

Quero aproveitar a oportunidade de estar aqui em cima para falar com os miúdos que nos estão a ver e aspiram a fazer música e ainda a todos os meus colegas que fazem música do coração, de forma pura, e dizem a verdade. Quero que saibam que jogamos um jogo baseado na opinião, não um desporto baseado em factos. Isto não é a NBA, onde no fim do ano seguramos um troféu porque tomámos a decisão certa ou ganhámos jogos”, começou por dizer.

O rapper e cantor que venceu o Grammy de “Melhor Canção Rap” com “God’s Plan” mas não venceu nas principais categorias afirmou ainda: “O meu ponto é: já ganhaste se tens pessoas a cantar as tuas canções da primeira à última palavra, se és um herói na tua terra natal. Se há pessoas que têm trabalhos normais que saem para a chuva e para a neve investindo o seu coração e o seu dinheiro para comprar bilhetes para os teus concertos não precisas disto aqui. Prometo-te, já ganhaste”.

Drake foi o autor de um dos discursos mais inesperados e desalinhados da noite. (@ Kevork Djansezian/Getty Images)

Lady Gaga também fez um discurso emocionada. A chorar, agradeceu à família e afirmou estar “muito orgulhosa de fazer parte de um filme que aborda questões de saúde mental, que é algo tão importante”.

Muitos artistas têm de lidar com isto e nós temos de tomar conta uns dos outros. Se virem alguém que está magoado, não olhem para o lado. E se estiverem magoados, apesar de ser difícil tentem encontrar a coragem dentro de vocês para mergulhar fundo e ir dizer a alguém, levar alguém para a vossa cabeça convosco”, apontou ainda Lady Gaga.

Ainda mais inesperada do que o teor dos discursos de Drake e Lady Gaga foi a aparição de Michelle Obama. A antiga primeira-dama dos Estados Unidos fez um discurso conciso sobre a importância que a música teve na sua vida e sobre a importância que pode ter para quem a ouve.

Michelle Obama, a primeira grande surpresa dos Grammys: “A música ajudou-me sempre a contar a minha história”

As ausências

Não é habitual falar-se tanto ou mais de ausências do que de presenças numa cerimónia de entrega dos prémios Grammy — sobretudo atendendo ao impacto e história que têm os “Óscares da música”, como também são conhecidos. Este ano, isso aconteceu: nos dias anteriores à cerimónia deste domingo à noite (madrugada de segunda-feira em Portugal) na arena Staples Center, em Los Angeles, discutiu-se mais quem não iria à cerimónia do que quem seria nela protagonista.

A ausente mais falado foi Ariana Grande. Inicialmente desafiada a atuar na 61ª cerimónia de entrega dos prémios Grammy, a jovem super estrela da pop (tem 25 anos) acabou por decidir não atuar. Porém, isso foi apenas o primeiro rastilho de uma polémica cujos contornos ainda não são inteiramente claros.

A primeira versão sobre o motivo da ausência de Ariana Grande foi avançada por um dos produtores da cerimónia, Ken Ehrlich. Este disse numa entrevista que a associação que organiza os Grammys e reúne os grandes intervenientes da indústria musical norte-americana (músicos, produtores musicais, engenheiros de som e outros profissionais do setor), a Recording Academy, manteve conversas com a cantora durante perto de um mês, para definir os contornos da atuação. Quando finalmente chegaram a acordo, Ariana Grande terá então “sentido que era demasiado tarde para a preparar”.

Ariana Grande numa atuação na Califórnia, no ano passado (@ Kevin Winter/Getty Images for iHeartMedia)

A versão não se manteve sem contraditório durante muito tempo. No Twitter, Ariana Grande acusou Ken Ehrlich de mentir. “Mantive a minha boca fechada mas agora estás a dizer mentiras sobre mim. Posso preparar uma atuação de uma noite para a outra e tu sabes isso, Kevin. Foi quando a minha criatividade e a possibilidade de me exprimir foram sufocadas por ti que decidi não participar. Espero que o show seja exatamente aquilo que esperas que ele seja, até mais do que isso”, referiu, terminando a publicação com um emoji [símbolo] de um coração.

Não há uma versão oficial sobre o que significará o tal “sufoco da criatividade e possibilidade de expressão” da cantora, mas a revista Variety noticiou que a organização da cerimónia dos Grammy vetou a primeira ideia de Ariana Grande, que passava por cantar o seu single mais recente “7 Rings” na arena Staples Center, em Los Angeles. Face à recusa, a cantora terá proposto como alternativa cantar outros temas por si escolhidos, sugerindo alguns. A organização dos prémios terá então permitido a Ariana Grande cantar “7 Rings” mas com duas condições. Primeiro, a cantora teria de interpretar o seu novo single durante um medley, cantando apenas excertos de alguns dos seus êxitos. Depois, a escolha da segunda canção entoada nesse medley ficaria a cargo da organização e não da cantora. Após ouvir a contra-proposta, Ariana Grande terá recusado participar, reportou a Variety.

Novamente no Twitter, a cantora pareceu corroborar implicitamente esta última versão dos acontecimentos: “Propus três canções diferentes. Isto tem a ver com colaboração, com uma pessoa sentir-se apoiada, com arte e honestidade. Não tem a ver com políticas, com fazer favores ou simular jogos. É só um jogo, malta? Lamento mas a música para mim não é isso”.

Ehrlich já respondeu. Em declarações à revista Rolling Stones, o produtor da cerimónia afirmou estar “surpreso” e comentou os tweets de Ariana Grande: “Vou dizer isto, provavelmente não querem que o diga mas vou dizê-lo: o que me chateou mais no que ela disse foi ter dito que não colaboro. Não digo às pessoas: é isto que deves fazer. Abordo isso de forma casual e digo: olha, talvez isto seja uma boa ideia, vamos tentar encontrar aqui um meio termo”.

Ariana Grande, contudo, não foi a única a recusar participar e atuar na cerimónia. Houve outros pesos pesados da indústria musical norte-americana que não quiseram subir ao palco da arena Staples Center na noite passada. Já lá iremos.

Problemas conjugais com o hip-hop — e uma espécie de boicote

A tensão entre a comunidade norte-americana do hip-hop e R&B e os prémios anuais da indústria musical dos Estados Unidos é antiga, mas tem vindo a acentuar-se nos últimos anos. À medida que algumas variantes do hip-hop e do novo R&B eletrónico (nomeadamente o rap hedonista e dançável e o R&B sensual, quando não sexual) tornaram-se cada vez mais populares nos EUA e no mundo — ocupando as playlists, entrando nas rádios juvenis e até generalistas e passando a ocupar os lugares cimeiros das tabelas de vendas, graças ao advento do streaming –, as nomeações de rappers e cantores de R&B digital para os maiores prémios dos Grammys também aumentaram.

Porém, ao contrário do que aconteceu com as nomeações, as vitórias desta comunidade — na sua maioria afro-americana — em categorias como as de “Melhor Álbum” e “Melhor Canção” não acompanharam o crescimento de popularidade e de aceitação pela crítica destes estilos musicais.

A crispação tem sido crescente e para esse crescimento têm contribuído alguns episódios ocorridos nos últimos anos. Um dos motivos de revolta foi a vitória do disco Morning Phase, do cantor e músico Beck, na categoria “Álbum do Ano”, no ano de 2015, em que concorria com Lemonade de Beyoncé por esse galardão máximo. Também a edição do ano passado avolumou e muito a insatisfação dos protagonistas e fãs deste género musical, depois do rapper Kendrick Lamar, autor do álbum DAMN., ter perdido o prémio de “Álbum do Ano” para Bruno Mars e o seu disco 24K Magic.

Este ano, Kendrick Lamar recusou atuar na cerimónia de entrega dos prémios Grammy (@ Getty Images for NARAS)

Quatro meses depois de ver fugir o mais ambicionado galardão dos prémios Grammy, Kendrick Lamar tornou-se o primeiro interveniente da música popular, isto é, exterior aos círculos da música clássica e jazz, a vencer um Pulitzer musical precisamente pela abrangência, impacto e vanguardismo do álbum DAMN.

O avolumar da insatisfação dos músicos de hip-hop e R&B eletrónico com os critérios de atribuição dos prémios e a sensação de injustiça face a uma ausência de reconhecimento da indústria musical do trabalho de artistas como Kendrick Lamar, Beyoncé e também Jay-Z (que foi nomeado para oito categorias em 2018 mas não venceu nenhuma) terá sido um dos motivos que levou Kendrick Lamar, Drake e Childish Gambino a recusar atuar na cerimónia da noite passada. A cerimónia contou ainda assim com atuações dos rappers Travis Scott e Post Malone

A notícia das recusas foi dada por um dos organizadores do prémio, Ken Ehrlich, que afirmou ao The New York Times: “Continuamos a ter um problema no mundo do hip-hop. Quando não levam para casa os grandes prémios, a consideração que têm perante a academia e o que os prémios Grammy representam continua a ser menos significativa na comunidade hip-hop [do que noutras], o que é triste”, apontou.

A cantora Beyoncé viu o seu último álbum ‘Lemonade’ ser nomeado para o Grammy de “Álbum do Ano”, mas acabou por ver o cantor Beck vencer o galardão, com o disco ‘Phases’

Se a primeira atribuição de uma estatueta de “Melhor Canção do Ano” a um tema rap poderia arrefecer a tensão, o discurso de Drake na noite deste domingo sugere que a insatisfação pode não ter ainda fim à vista.

Cada vez menos relevantes?

Ainda não há dados sobre a quantidade de espectadores da cerimónia da noite passada, mas a audiência televisiva da cerimónia no ano anterior, 2018, só pode preocupar os organizadores dos prémios Grammy. Houve menos de 20 milhões de espectadores a ver a cerimónia de 2018 dos Grammy e o programa não registava níveis tão baixos de audiência desde 2009.

Entre os analistas e críticos musicais, há um consenso generalizado sobre alguns dos motivos que justificam uma crescente perda de relevância dos “Óscares da música” nos últimos anos. Se os critérios de atribuição dos prémios têm merecido muita discussão e oposição nos últimos anos, soma-se a isso uma fragmentação de públicos e uma multiplicação de artistas, álbuns e estilos musicais, que por si só já tornam difícil o alcance de uma unanimidade sobre as escolhas dos artistas premiados.

Lady Gaga cantou o tema “Shallow” na arena Staples Center, na noite passada, 10 de fevereiro de 2019, em Los Angeles. (@ Emma McIntyre/Getty Images for The Recording Academy)

Desigualdade de género: a luta contra o favorecimento dos homens

Um dos aspetos que marcou a edição deste ano foi a luta contra a nomeação e atribuição de prémios maioritariamente a músicos homens. O movimento surgiu na sequência das críticas a uma desigualdade de género notória entre os nomeados da edição de 2018, em que na categoria de “Melhor Álbum” só foi nomeada uma mulher, que por sinal não atuou, e só 25% dos nomeados para as quatro categorias principais de “Melhor Álbum”, “Melhor Canção”, “Gravação do Ano” e “Artista Revelação” eram mulheres.

A polémica agudizou-se no ano passado com declarações do presidente da maior associação do setor nos Estados Unidos da América, a Recording Academy, Neil Portnow. Este sugeriu que as mulheres da indústria musical deveriam “elevar o nível” para receber mais nomeações. Mais tarde, Portnow disse que as palavras foram “retiradas do contexto” e anunciou que abandonará a presidência da organização no término do seu mandato, já este verão.

No ano passado, Lorde tinha sido a única mulher nomeada para a categoria de autora de um dos álbuns do ano, para os júris destes “Óscares da música” (@ JOÃO PORFÍRIO / OBSERVADOR)

O incómodo com a desigualdade entre o número de homens e mulheres nomeados acabou por originar mudanças no painel de votantes deste ano: foram convidadas mais 900 jurados para “acrescentar diversidade” à composição racial e social do júri. Desses 900 jurados convidados, cerca de 20% aceitou o desafio a tempo de votar este ano.

A nova composição do júri somada ao aumento do número de nomeados para as quatro principais categorias dos Grammy — passaram a ser oito nomeados, em vez de cinco — fizeram com que 53% dos músicos que concorreram este ano aos prémios de “Melhor Álbum”, “Melhor Gravação”, “Canção do Ano” e “Artista Revelação” fossem mulheres. Kacey Musgraves acabou por ganhar na categoria de “Álbum do Ano” e Dua Lipa na categoria de “Artista Revelação”. Na categoria “Melhor Álbum Rap”, a vencedora foi Cardi B, que se tornou a primeira mulher a vencer a solo esta estatueta. As mulheres estiveram também em maioria este ano nas atuações musicais ao vivo durante a cerimónia.

Cardi B tornou-se a primeira mulher a vencer o Grammy “Melhor Álbum Rap” a solo. (@ Emma McIntyre/Getty Images for The Recording Academy)

O desafio futuro passará, de acordo com as conclusões de um grupo de trabalho criado pela associação para estudar o assunto, por aumentar o número de mulheres a trabalhar na área da produção musical e engenharia de som, duas profissões do setor em que a disparidade entre o número de homens e mulheres ainda é enorme.

Curiosa foi também a ausência de reações ou de aplausos convictos às declarações de Neil Portnow, que discursou na última cerimónia de entrega dos prémios Grammy como presidente da associação que a organiza, a Recording Academy. Portnow abordou diretamente e sem grandes rodeios as acusações de discriminação de género de que a organização dos prémios foi alvo, embora não se tenha voltado a referir às suas polémicas declarações sobre a necessidade de as mulheres “elevarem o nível”.

Neil Portnow fez o seu último discurso como presidente da associação The Recording Academy numa cerimónia de entrega dos prémios Grammy. (@ Emma McIntyre/Getty Images for The Recording Academy)

No palco da arena Staples Center, o organizador e anfitrião falou num grupo “memorável e diverso” de pessoas que estavam ali com ele nessa noite. Um grupo que incluía, vincou, “algumas das vozes femininas mais entusiasmantes, recentes e lendárias dos nossos tempos”.

Para mim isso parece-me ser algo acertado, porque este ano fui recordado de que ser confrontado cara a cara com um assunto abre-nos mais os olhos e faz-nos estar mais comprometidos do que nunca para abordarmos as questões que dele decorrem”, apontou Neil Portnow.

O ainda presidente da associação que representa os principais intervenientes da indústria musical norte-americano terminou dizendo que “necessidade de mudança social tem sido um marco da experiência americana, desde a fundação do nosso país até aos tempos complexos. Temos de aproveitar este momento único para fazer mudanças na nossa indústria, para acrescentar diversidade e inclusão a tudo o que fazemos. E fá-lo-emos”.