Em 2008, Oliver Stone realizou “W”, um filme sobre a vida de George W. Bush. Quem esperava que Stone aplicasse uma abordagem arrasa-quarteirões ao biografado, enganou-se redondamente. “W” é uma fita isenta, o mais possível apoiada em factos e rodada num tom sereno, em que o realizador de “JFK” tenta explicar quem é George W. Bush, contar a sua carreira política até chegar à Casa Branca e analisar a sua presidência. Nem ele, nem Josh Brolin que interpreta Bush, o reduzem a um bufão, uma caricatura ou um boneco, ou lhe negam a sua humanidade. Oliver Stone é um homem de esquerda e “W” não é, obviamente, um filme pró-Bush. Mas é uma tentativa séria, equilibrada e rigorosa de biografar o homem e o político em cinema. Já Dick Cheney, o vice-presidente de George W. Bush, não teve a mesma sorte em “Vice”, de Adam McKay.

[Veja o “trailer” de “Vice”]

Dick Cheney foi o mais poderoso e influente vice-presidente da história dos EUA – para muitos, o presidente “de facto”, e não Bush — e é muito difícil defendê-lo. Cheney pôs contra ele a esquerda americana e uma boa parte da direita, da conservadora à libertária, deixou a sua impressão digital nas piores decisões da administração Bush, da mistificação das armas de destruição maciça de Saddam Hussein à invasão do Iraque, e consequente pandemonização do Médio Oriente e desestabilização internacional, passando pela criação de leis securitárias atentatórias das liberdades individuais e civis, sob pretexto da guerra ao terror, e é um dos principais responsáveis por o Partido Republicano estar de pantanas até hoje. E não ajuda muito a imagem de homem distante, insensível e antipático que projeta.

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[Veja uma entrevista com Christian Bale]

Só que a estratégia escolhida por Adam McKay em “Vice” para contar a vida de Dick Cheney (interpretado por Christian Bale), a sua carreira política e a sua acção no governo dos EUA como um dos principais expoentes da doutrina “neocon” (uma expressão que, curiosamente, não se ouve uma só vez no filme) é de tal forma tendenciosa, primária, desonesta e caricatural, e insulta de tal maneira a inteligência do espectador, independentemente de estar muito ou pouco informado sobre a personagem, que no final das mais de duas horas do filme, o realizador comete a proeza de quase nos pôr a simpatizar com Cheney. Candidato a oito Óscares, “Vice” funciona segundo uma agenda fanática e intensamente “anti”, em bota-abaixo contínuo. Quando um filme, logo a abrir, chama ao homem que vai retratar, “um sacana dissimulado”, percebemos logo com o que podemos contar.

[Veja uma entrevista com Amy Adams]

Tal como Oliver Stone fez com George W. Bush em “W”, McKay mostra em “Vice” que Dick Cheney não saiu do nada e aterrou por acaso no cargo de vice-presidente dos EUA. O filme conta, sempre a andar para a frente e para trás, a vida de Cheney desde a juventude irresponsável que o levou a deixar os estudos universitários e a ir trabalhar a instalar linhas de alta tensão. Até ter entrado nos eixos por influência da mulher Lynne e iniciado um percurso político alimentado por uma insaciável ambição, grande capacidade de trabalho e influência nos bastidores e uma fina astúcia, que o conduziu de estagiário no Congresso a importantes cargos nas administrações de Gerald Ford e George Bush. E depois, durante os anos Clinton, ao sector privado no gigante petrolífero Halliburton, antes do regresso à Casa Branca com Bush filho.

[Veja uma entrevista com Adam McKay]

O primeiro erro de Adam McKay foi julgar que o que resultou às mil maravilhas no seu excelente filme anterior, “A Queda de Wall Street” (2015), em que explicava as razões do estoiro financeiro de 2008, ia também correr bem quando aplicado à figura e à biografia de Dick Cheney: uma abordagem em jiga-joga cronológica, um narrador omnisciente, e um tom a oscilar entre o sério e o piadético, o dramático e o gozão, com digressões marginais e interrupções, a que foram acrescentadas muitas liberdades com os factos. O que deu para trocar bem por miúdos em “A Queda de Wall Street”, já não funcionou em “Vice”, porque não estamos a falar de números, investimentos e mercados, mas sim de pessoas, de política e de poder. Onde aquele é cinematograficamente dinâmico e vistoso, “Vice” é dissonante e mastigado.

[Veja uma entrevista com Sam Rockwell]

Depois, “Vice” tem um cerrado “parti pris” político-ideológico, que se expressa num reducionismo entre o cartoonesco e o diabolizador. Dick Cheney é uma amálgama de Darth Vader de fato e gravata, de vilão pronto-a-odiar de filme de série B e de personagem maléfica, um diabo à solta na Casa Branca. Ele, e o Partido Republicano, agem apenas para beneficiar os americanos “brancos, ricos e preconceituosos”, contra os progressistas, generosos e virtuosos (num dos momentos mais ridículos de “Vice”, vemos ser retirados pela malvada administração de Ronald Reagan, os painéis solares instalados no telhado da Casa Branca pelo bondoso Jimmy Carter). O filme vai ao ponto de culpar Cheney pelo aparecimento do ISIS, e omite que o Partido Democrata apoiou durante muito tempo a política externa e as medidas de exceção da “guerra ao terror” da administração Bush. Que chegou ao poder graças a uma vasta e sinistra conspiração político-mediática conservadora, claro.

[Veja uma cena de “Vice”]

Christian Bale, ator mediano e raras vezes entusiasmante, muito inferior aos seus compatriotas Gary Oldman e Tim Roth, engordou quase 20 quilos e submeteu-se à aplicação de próteses e chumaços de maquilhagem, bem como de efeitos digitais, para poder personificar Dick Cheney nas várias fases da sua vida. Mas estas alterações físicas e técnicas não constituem por si só uma caução para uma “boa” interpretação. No caso do Cheney de Bale, apenas conferem ao papel uma dimensão de proeza laboriosa, e acabam por acentuar a dimensão artificiosa, de “boneco”, que caracteriza esta representação do antigo vice-presidente dos EUA (será interessante compará-la com a de Richard Dreyfuss no citado “W”.) O que Bale – ao menos – apanha bem é o andar da personagem e o hábito de Cheney de falar pelos cantos da boca, ora casualmente, ora de forma ameaçadora.

[Veja imagens da rodagem de “Vice”]

O traço grosso, muito caricatural e ridicularizador que enforma “Vice”, é também aplicado a quase todas as restantes personagens da fita, George W. Bush incluído (interpretado por Sam Rockwell como um completo lorpa, saído das páginas da revista “Mad”). Além de Colin Powell (Tyler Perry), a única que escapa é Lynne Cheney, mulher de Dick Cheney, muito bem defendida por Amy Adams, à qual é dada alguma complexidade e humanidade, assim como às duas filhas do casal. Uma das raras vezes que “Vice” concede a Cheney alguma decência, é quando protege a filha mais nova, lésbica, do escrutínio público, mas mais tarde até isso o filme lhe tira, quando a outra filha decide concorrer a um cargo político. E o monólogo final da personagem, essencialmente para que Cheney se defina como “um mal necessário”, serve para o enterrar ainda mais.

Uma figura com a dimensão e a importância da do antigo e controverso vice-presidente dos EUA, a sua trajetória política e o enorme impacto interno e global da sua vigência na Casa Branca nos anos Bush, não se podem sintetizar e analisar num filme com pouco mais de duas horas como “Vice”. Sobretudo considerando a pesada mochila de execração vitriólica com que Adam McKay o carregou. Dick Cheney pedia uma série de televisão, e de preferência assinada por um realizador como Oliver Stone.