Cirurgias de nove doentes oncológicos em risco de vida ou em situações muito graves foram adiadas devido à greve dos enfermeiros, apesar de urgentes e abrangidas pelos serviços mínimos, segundo a defesa jurídica do Governo entregue em tribunal.
De acordo com a argumentação enviada na terça-feira ao Supremo Tribunal Administrativo (STA) pelo Governo, os serviços mínimos foram desrespeitados em cerca de 450 cirurgias em quatro centros hospitalares durante a greve em curso dos enfermeiros nos blocos operatórios, situação que levou à requisição civil decretada a 7 de fevereiro.
No documento, a que a Lusa teve acesso, o Governo apresenta casos concretos ocorridos nas quatros instituições abrangidas pela requisição civil: Centro Hospitalar Entre o Douro e Vouga; Centro Hospitalar Tondela-Viseu; Centro Hospitalar e Universitário de São João e Centro Hospitalar e Universitário do Porto.
Entre as cirurgias adiadas, encontram-se nove casos de intervenções a doentes oncológicos classificados com nível de prioridade 3 ou 4.
Os “doentes com doença oncológica conhecida ou suspeita em que há risco de vida” são considerados como prioridade de nível 4 e, de acordo com o documento, houve duas pessoas nesta situação que viram a sua cirurgia adiada por falta de enfermeiros.
Os casos ocorreram em hospitais do Porto: no Centro Hospitalar e Universitário do Porto (Santo António) e no Centro Hospitalar e Universitário de S. João (CHUSJ).
No Centro Hospitalar e Universitário do Porto, entre os casos considerados serviços mínimos não cumpridos e agora divulgados, encontra-se a história de um utente de 74 anos que deveria ter sido alvo de uma intervenção para lobectomia do cérebro, “por se tratar de um doente oncológico com nível de prioridade 4”. No Centro Hospitalar e Universitário de São João foi adiada uma cirurgia a um utente de 51 anos.
Houve ainda seis casos de doentes oncológicos classificados como prioridade três, ou seja, “situações com progressão rápida, sem risco de vida imediato, mas podendo evoluir a curto prazo para essa fase”.
Um dos exemplos é o de um doente de 47 anos, que também viu a sua operação adiada a 5 fevereiro, apesar de ser considerada “uma operação em doente oncológico com nível de prioridade 3”. Cinco dos casos ocorreram no Centro Hospitalar e Universitário de São João, tendo o outro caso ocorrido no outro hospital do Porto.
No total, no Santo António foram adiadas mais de 160 cirurgias “correspondentes às categorias de serviços mínimos definidos pelo Tribunal Arbitral, todos por indisponibilidade de enfermeiros”, lê-se na defesa do Governo.
O documento a que a Lusa teve acesso refere ainda outras situações, como a de um outro utente de 87 anos que deveria ter sido tratado pela equipa de cirurgia vascular para uma intervenção de endarterectomia de vasos da cabeça e do pescoço, que era considerada “uma intervenção em situação de risco de dano irreparável e irreversível”.
Nos outros dois centros hospitalares também são descritos casos que o Governo considera terem violado o cumprimento dos serviços mínimos.
Um utente com 79 anos do Centro Hospitalar de Entre o Doutro e Vouga viu a sua cirurgia adiada no dia 6 de fevereiro. Naquele dia deveria ter sido alvo de “uma intervenção para excisões ou destruições transuretrais de lesão ou tecido da bexiga em contexto oncológico”, uma intervenção que deveria ter sido realizada uma vez que estava prevista no serviço mínimo “por se tratar de ato cirúrgico em que o tempo máximo de resposta garantido se encontra ultrapassado”.
No dia 5 de fevereiro, um outro utente, de 23 anos, deveria ter sido alvo de uma intervenção no Centro Hospital de Tondela-Viseu para “redução aberta de fratura do rádio e cúbito com fixação interna”, por se tratar de um “ato cirúrgico cujo tempo máximo de resposta garantido (15 dias) se encontrava em risco de incumprimento.
No total, são apresentados 51 casos concretos.
O Centro Universitário Hospitalar de São João, no Porto, é o que apresenta mais casos, com cerca de 240 operações adiadas por falta de enfermeiros, entre 31 de janeiro, dia do início da paralisação, e 7 de fevereiro, data do Conselho de Ministros que decretou os serviços mínimos.
Segue-se o Centro Hospitalar e Universitário do Porto, onde foram adiados mais de 160 atos cirúrgicos, “todos por indisponibilidade de enfermeiros”.
No Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga, foram contabilizadas 38 cirurgias adiadas e no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu é dito apenas que a greve dos enfermeiros foi “causa direta do adiamento de mais de uma dezena de cirurgias” que deveriam ter sido feitas ao abrigo dos serviços mínimos.
O Conselho de Ministros decretou a 7 de fevereiro uma requisição civil na greve dos enfermeiros em curso desde 31 de janeiro nos blocos operatórios de quatro centros hospitalares, alegando incumprimento dos serviços mínimos.
A “greve cirúrgica” foi convocada pela Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE) e pelo Sindicato Democráticos dos Enfermeiros (Sindepor) em dez centros hospitalares, até 28 de fevereiro, depois de uma paralisação idêntica de 45 dias no final de 2018.
As duas greves foram convocadas após um movimento de enfermeiros ter lançado recolhas de fundos numa plataforma ‘online’ para financiar as paralisações, conseguindo um total de 740 mil euros. Os principais pontos de discórdia são o descongelamento das progressões na carreira e o aumento do salário base dos enfermeiros.
A requisição civil foi contestada pelo Sindepor no Supremo Tribunal Administrativo, que se deverá pronunciar nos próximos dias.
No final da semana passada, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República considerou que a greve é ilícita, um parecer que foi de imediato homologado pela ministra da Saúde, ordenando a marcação de faltas injustificadas aos enfermeiros em greve a partir de hoje.
A ASPE pediu a suspensão imediata da paralisação, mas o Sindepor vai mantê-la e o seu presidente iniciou uma greve de fome.