O filme que a Netflix resume como “um retrato intenso e comovente da vida de uma empregada doméstica durante a instabilidade política no México dos anos 70”, e que na madrugada desta segunda-feira, sendo favorito, deixou escapar o Óscar de Melhor Filme, já teria um lugar especial na história, fosse qual fosse a decisão da Academia. Além dos quatro Óscares recebidos, pela primeira vez um produto Netflix conheceu a mais alta nomeação da indústria do cinema americano e, para lá disso, veio com a singularidade de ser obra de autor, a preto e branco, falada em espanhol e num dialeto nativo do México (o mixteco) e por ter elenco maioritário de não-atores, a começar por Yalitza Aparicio Martínez, indicada como Melhor Atriz Principal, primeira mulher indígena a consegui-lo.

“Roma”, de Alfonso Cuáron – e não se deve esquecer que em 2017 outra plataforma de “streaming”, a Amazon Video, tinha conseguido levar “Manchester by the Sea” à nomeação em cinco categorias dos Óscares, incluindo a de Melhor Filme, ou que já em 2018 a própria Netflix esteve candidata a quatro prémios da Academia com “Mudbound – As Lamas do Mississípi” – tem sido descrito como uma história de afetos, memórias e forte carga emocional, a falar para uma época em que mulheres, grupos desfavorecidos e tensões raciais e de classe ganham espaço e voz.

Com classificação para maiores de 13 anos e duração de duas horas e 15 minutos, foi produzido por uma das mais relevantes plataformas de televisão não-linear, a Netflix, mas estreou-se nas salas de cinema (pelo menos 1100 salas de 41 países, diz a Netflix ) antes de se estrear no meio digital (190 países), o que representou outra novidade, ou um ponto de viragem na estratégia da produtora, como notou o crítico Charles Bramesco no “Guardian”. Em rigor, não se trata de inteira novidade, nem para a própria Netflix, que já experimentara, por exemplo, uma distribuição física, mas pouco relevante, com o filme “Okja”.

[o trailer de “Roma”:]

A aproximação à indústria estabelecida do cinema por parte uma produtora que no modelo de negócio e posicionamento rejeita esse mesmo sistema de produção, exibição e premiação, tem sido ao longo dos meses tão ou mais falado do que o próprio conteúdo do filme. “O que está em causa é a ideia de filme, o onde e quando se vê filmes e se a indústria do cinema se abrirá às ideias da Netflix ou apertará ainda mais os critérios”, escreveu David Sims na revista “The Atlantic”.

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Em resumo, uma produtora de TV que se estabeleceu como alternativa à indústria do grande ecrã quis, afinal, e nisso investiu muitos milhões em promoção, que essa indústria a consagrasse – com o objetivo de alcançar dividendos, cineastas de nome, aura de referência. É a interpretação corrente.

Cuarón não deixou de responder a isso em janeiro, numa conferência de imprensa em  após ter recebido os Globos de Ouro de Melhor Realizador e Melhor Filme Estrangeiro: ir para as salas quase em simultâneo com a estreia digital “não foi um ato de cosmética”, garantiu. Mas é sinal dos tempos. Porque a Netflix “quer ser levada a sério a qualquer preço”, afirmou Charles Bramesco, ou simplesmente porque “estamos a assistir à metódica decomposição de uma cultura cinéfila que, ao longo de um século, celebrou a sala escura como lugar sagrado de descoberta e contemplação dos filmes”, analisou o crítico João Lopes. Isto a nível oficial, claro, porque à margem das regras há muito que os públicos fazem quaisquer visionamentos audiovisuais em computadores ou dispositivos móveis, através da partilha de ficheiros na internet – o que é também visto pelas empresas de “streaming” como ameaça.

Filme “íntimo e universal”

“Roma” passa-se no espaço de um ano, entre 1970 e 1971, e traz para primeiro plano  trabalho doméstico, o papel das mulheres, as relações familiares, os indígenas mexicanos, sentimentos universais. “Um filme muito pessoal, nascido das minhas recordações”, explicou o realizador. “Sobre uma família, uma cidade e um país, mas, sobretudo, acerca da experiência humana, íntimo e universal”, acrescentou. Na noite dos Óscares, já anunciado como  Melhor Realizador, sublinhou uma outra frase-chave: “O nosso trabalho é olhar para onde os outros não olham.”

A personagem Cleo Gutiérrez (Yalitza Aparicio) é empregada e ama de uma família mexicana de classe média, inspirada em figura idêntica, Libo Rodríguez, que marcou a infância do realizador num bairro mexicano chamado Roma. Tiveram longas conversas durante a preparação do filme e é a ela que Cuarón dedica a película.

Para lá das obrigações domésticas, Cleo é educadora e figura maternal para as crianças da casa, apoio moral e afetivo perante falhas dos pais. Esses laços marcam a história, daí que Cuarón descreva a obra como um retrato das suas próprias feridas familiares, que serão as feridas de muitas outras pessoas. No que muitos viram uma declaração de amor fraterno, outros, porém, viram um retrato demagógico de empregada pobre e silenciosamente conformada, caso do crítico Richard Brody, da revista “New Yorker”.

Yalitza Aparicio, de 25 anos, que aqui se estreou como atriz, foi escolhida através de “casting”, depois de o realizador ter passado mais de um ano à procura da pessoa certa para o papel e ter encontrado nela uma “sensação de familiaridade”. Sob os holofotes nos último meses, foi capa de revistas no México, objeto de entrevistas na imprensa americana de grande circulação e arrisca tornar-se, disse o “Washigton Post”, a voz e a face dos indígenas mexicanos mantidos nas margens.

Quando o “Guardian” lhe perguntou se realizar “Roma” o tinha levado a ver a própria infância com outros olhos, Cuarón respondeu que “não”. “Fez-me repensar muitas situações, incluindo a cumplicidade com certas situações como a hierarquização social e a relação entre raça e classe social.”

Criado sem o pai

Vencedor de sete Óscares em 2014, entre eles o de Melhor Realizador, com “Gravidade”, a que juntou agora o de Melhor Realizador, com “Roma”, Alfonso Cuarón nasceu há 57 anos na Cidade do México e vive hoje na pequena cidade italiana de Pietrasanta, não longe de Florença. Aparência de “skater” de meia-idade quando se passeia descontraidamente na rua, descrevia uma reportagem recente do “New York Times”, dono de um controlo emocional forte, que lhe dará uma serenidade contagiante quando fala em público.

Terceiro de quatro irmãos, foi criado pela mãe, que morreu em 2018, e por uma empregada. O pai, desaparecido em 2015 era médico e terá abandonado a família quando Cuarón tinha 10 anos, o que o envergonhava a ponto de dizer no colégio católico onde estudava que o pai nunca aparecia por estar sempre a viajar.

“Roma”: Alfonso Cuarón, as memórias de infância e a história da criada

Pai de três filhos, de dois casamentos, Cuarón começou a fazer curtas-metragens em 1983, quando ainda trabalhava como realizador de televisão, e fez-se notado a partir da segunda metade dos anos 1990, com “A Princesinha”, que em Portugal nem chegou a ter estreia comercial. Definitivamente, afirmou-se com “E a Tua Mãe Também”,  com Gael García Bernal e Diego Luna. Mas para a lenda pode dizer-se que começou a filmar aos 10 anos, quando a mãe, farmacêutica, lhe ofereceu uma câmara Super 8. Cedo também começou a ver filmes como forma de escapismo e hoje cita Ken Loach, Víctor Erice ou Steven Spielberg como referências, mesmo se em “Roma”, pela primeira vez, rejeitou qualquer sugestão dos muitos filmes que já viu. Chegou a cortar cenas já filmadas e bem sucedidas por sentir que estava a citar outros realizadores.

De resto, filmou sem revelar o guião aos atores, dando-lhes as falas apenas a horas do início de cada filmagem, ou não lhes deu sequer as falas, em busca de uma naturalidade que há quem diga ser uma espécie de neorrealismo.

Rodado em digital de grande formato, o filme “vai da pequena bolha da família ao grande bulício da cidade e às convulsões do país, dos interiores aos espaços mais abertos, do pessoal ao geral, do mais íntimo ao colectivo”, escreveu o crítico Eurico de Barros no Observador, destacando a “assombrosa sofisticação técnica e uma ideia condutora sempre visual”. Um objeto feito à base de detalhes, planos gerais, muito informação visual, disse no “Público” o crítico Luís Miguel Oliveira, “feito a pensar nas dimensões e proporções de um ecrã de sala de cinema, e só nessas condições se revelará plenamente”.

Os 7.664 espectadores portugueses

Os EUA e o México viram o filme em sala a 21 de novembro, antes de qualquer outro país, seguindo-se Canadá e Reino Unido (29 de novembro) e Itália e Espanha (3 e 4 de dezembro, respetivamente). A Portugal chegou a 13 de dezembro, em sete salas, um dia antes do início da aparição via “streaming”. E já tinha conhecido passagem única a 25 de novembro pelo Lisbon & Sintra Film Festival.

Não se sabe quantos espectadores fez em Portugal naquelas últimas semanas de 2018, porque a informação de bilheteira agregada pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) foi deliberadamente omitida neste caso para não contrariar a muito criticada política da Netflix de não divulgar audiências. Sabe-se apenas que no período entre 1 de janeiro e 2 de fevereiro perfez 7.664 espectadores em 284 sessões, dados que o ICA publicou entretanto, em aparente contradição com o critério antes adotado.

Acessível para assinantes do serviço Netflix, “Roma” está também em cartaz por estes dias: Lisboa (Cinema Ideal e Cinema Nimas), Algarve (salas AlgarCine de Portimão, Lagos e Olhão) e Castelo Branco (Cinebox). Outras salas podem entretanto surgir, perante a consagração do realizador nos Óscares.

No ano passado, a Netflix apresentou-se no Festival de Cannes com “Okja” e “The Meyerowitz Stories (New and Selected)” , mas recebeu um aviso claro, por pressão dos exibidores franceses, de que tal estratégia não voltaria a funcionar: só filmes estreados em salas, em França, poderiam concorrer em futuras edições do certame, sendo que no país um filme de grande ecrã só tem autorização para ser distribuído em “streaming” três anos depois da estreia. Em protesto, a Netflix retirou todos os filmes programados para Cannes em 2018, incluindo os que estavam fora de competição e não eram abrangidos pela nova regra.

Desprezada pelo festival de cinema mais importante do mundo, a empresa dirigida pelos americano Reed Hastings e Ted Sarandos foi a Veneza e em Setembro conquistou o Leão de Ouro para a “Roma” de Cuarón. Há dias, nos BAFTA, recebeu idêntica consagração. Na 91ª cerimónia dos Óscares, esteve quase.