A imprensa espanhola não teve outra hipótese que não fosse ficar rendida à exibição de gala de Cristiano Ronaldo que vulgarizou a organização defensiva considerada por muitos (e com sentido) como uma das melhores da Europa. Até por um pormenor que, neste contexto, faz toda a diferença: bem mais do que tentar chegar ao Barcelona no primeiro lugar da Liga, o Atl. Madrid tinha o sonho de poder voltar a uma final da Champions no seu estádio, o Wanda Metropolitano, para tentar vingar as recentes derrotas frente ao rival Real. No entanto, houve uma celebração que não passou ao lado. Bem pelo contrário.

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Entre o “feio” e a “vergonha”, o gesto do português a imitar a frenética reação do técnico Diego Simeone depois do 2-0 de Godín na primeira mão dos oitavos acabou por ganhar redobradas proporções, até por toda a história que trazia atrás de si: na capital espanhola, depois de uma saída amargurada do Real, Ronaldo foi sentindo sempre a animosidade dos adeptos colchoneros, que iam entoando cânticos sobre os problemas que o jogador teve com o Fisco para tentarem desestabilizar o avançado. Na resposta, ainda em campo, o madeirense foi levantando a mão e abrindo os cinco dedos, que simbolizavam o número de Champions ganhas entre Manchester United e Real Madrid. Mais tarde, na zona mista, nova rajada com o mesmo argumento. “Eu, cinco Champions. Atleti, zero. Eu cinco, Atleti zero”, atirou enquanto ia para a saída. “Eliminatória feita? Vamos ver”, acrescentou.

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“Eu, cinco Champions. Atleti, zero. Eu cinco, Atleti zero”: o adeus de Ronaldo a Madrid na zona mista

Esta noite, o “vamos ver” transformou-se num “nem por isso”. Primeiro, com um golo de cabeça ao segundo poste depois de um cruzamento da esquerda; depois, com um golo de cabeça ao segundo poste depois de um cruzamento da direita; por fim, com uma grande penalidade onde enganou Oblak. Além de se ter tornado o primeiro jogador a chegar (e ultrapassar) os 125 golos em provas da UEFA, Ronaldo conseguiu ainda igualar um dos poucos recordes que ainda não lhe pertenciam quando começamos a olhar para os números globais da Liga dos Campeões: oito hat-tricks na prova, tantos como Messi. A missão, que parecia impossível para a Juventus, não passou de mais um teste superado aos limites do capitão da Seleção. E os italianos deram mais um passo rumo ao grande objetivo da temporada: quebrar o jejum de títulos europeus.

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“Foi uma noite especial. Não apenas pelos golos, mas pela equipa, pela atitude incrível. Esta é a mentalidade de Champions. Ainda não ganhámos nada, mas é um motivo de orgulho e estamos no bom caminho”, comentou o jogador ainda dentro das quatro linhas do estádio da Juventus. “Foi para isto que a Juventus me contratou, para tentar ajudar a equipa. Tento fazer o meu trabalho e obviamente que estou muito feliz. Foi uma noite mágica. O Atl. Madrid é uma grande equipa, muito difícil, mas nós também somos uma grande equipa e mostrámos esta noite que merecemos passar”, completou. Em poucas palavras, Ronaldo resumiu mais uma noite que fica para a história. E logo no relvado que lhe deu uma segunda vida.

Ronaldo a celebrar o segundo golo da noite, com a bandeira portuguesa como fundo (FILIPPO MONTEFORTE/AFP/Getty Images)

No ano passado, e de comum acordo com Zidane, o técnico que regressa agora ao Real sem a sua principal figura da carreira que o conduziu a tricampeão europeu, o português teve uma entrada mais controlada na época. Participou na Supertaça Europeia uns minutos, acabou por ser expulso na primeira mão da Supertaça em Barcelona depois de sair do banco e resolver, andou um pouco mais apagado nos encontros iniciais da Liga. Quando chegava à Champions, aparecia: quatro golos ao Apoel em dois jogos, três golos ao B. Dortmund em dois jogos, dois golos do Tottenham em dois jogos. O avançado deveria sobretudo aparecer na segunda metade da temporada mas, como quem não quer a coisa, marcou em todos os encontros da fase de grupos – mais um recorde. A eliminar, fez a diferença nas duas partidas dos oitavos com o PSG, com três golos. Seguia-se a Juventus.

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Todos percebiam que aquele seria o grande teste ao bicampeão europeu mas Ronaldo, como era costume, apareceu. Logo aos três minutos, inaugurou o marcador; quase a meio da segunda parte, apontou o 2-0. De pontapé de bicicleta, naquele que foi o melhor golo de sempre da carreira. No meio da celebração efusiva, olhou à volta e viu um estádio cheio de adeptos adversários de pé a baterem palmas pela obra prima que tinha acabado de fazer. Sorriu, curvou-se e agradeceu. Mais palmas. E ainda teve um gesto com Buffon, que não passara ao lado que acontecera apesar de ser o maior prejudicado. Foi nesse momento que nasceu uma paixão que poucos conseguiriam antever que seria recíproca. De um lado, a Juventus. Do outro, Cristiano Ronaldo. O mesmo carrasco que evitaria na segunda mão, no Santiago Bernabéu, uma reviravolta que seria épica dos transalpinos.

O pontapé de bicicleta de Ronaldo em Turim pelo Real Madrid, que os adeptos da Juve aplaudiram de pé (Emilio Andreoli/Getty Images)

Depois da eliminação do Bayern nas meias-finais, o Real Madrid venceu o Liverpool no encontro decisivo e levantou pela terceira vez consecutiva a Liga dos Campeões. Logo após o jogo, Ronaldo deixou o primeiro sinal de que a continuidade em Espanha não era uma certeza absoluta. A frase acabou depois por ser “abafada” pelos dois lados, até porque as atenções estavam prestes a virar-se para a Rússia e para o Campeonato do Mundo, mas aquele desabafo tinha sido tudo menos inocente. E a eliminação nos oitavos de Portugal frente ao Uruguai, depois de mais uma exibição memorável de CR7 no encontro inaugural contra a Espanha onde apontou um hat-trick, precipitou aquela que viria a ser grande transferência do verão.

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A decisão já estaria tomada antes, como o próprio Marcelo assumiu recentemente quando disse que sabia da saída de Ronaldo antes de haver confirmação oficial, mas tudo o que se foi passando antes e depois da Champions convenceram o português a ter uma decisão considerada por muitos como um ato arriscado: sair do Real, onde não tinha gostado da forma como Florentino Pérez assumiu que não se importaria de vendê-lo se alguém chegasse aos 100 milhões de euros, além de outras “guerras” que vinham de trás como a questão salarial (ou a discrepância com Neymar e Messi) ou a falta de apoio no diferendo com o Fisco. A Juventus acertou na mouche em tudo: na abordagem, nos primeiros contactos, no ordenado proposto, no projeto apresentado, na forma como voltou a fazer com que o cinco vezes melhor do mundo se sentisse “amado”.

Desde o primeiro dia em Turim que Ronaldo tem sentido o apoio de milhares de fãs da Juventus (ISABELLA BONOTTO/AFP/Getty Images)

“Foi uma decisão fácil. Vendo o poderio que a Juventus tem, para mim, é uma das melhores equipas do mundo. É uma decisão que vem acontecendo ao longo do tempo. Sempre quis jogar aqui e sempre o disse aos meus companheiros mais próximos. É um passo importante na minha carreira, o melhor clube italiano, com grandes jogadores e um grande presidente. É mais um desafio, sempre gostei de desafios. Há jogadores que com a minha idade vão finalizar a carreira para o Qatar ou China; eu venho rejuvenescer para um clube grande como este. Estou feliz, agradecido à Juventus pela oportunidade de continuar a minha brilhante carreira. Não vim aqui passar férias, vou tentar surpreender-vos uma vez mais. Quero brilhar, deixar a minha marca. Vou estar preparado e tenho a certeza de que vai correr bem. É um passo à frente na minha carreira”, começou por dizer no dia em que foi apresentado oficialmente em Turim como reforço da Vecchia Signora.

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“Quero demonstrar aos italianos que sou um jogador top. Vou preparar-me bem. Penso que não tenho de demonstrar nada a ninguém, os números não enganam, mas gosto de desafios, não gosto de estar num território cómodo. Quero fazer história aqui, depois de o fazer no Manchester e no Real. Sei que é uma liga difícil, muito tática, mas gosto de experimentar outras coisas. A receção foi um momento especial, dá motivação para começar bem na minha equipa. Quero agradecer pela forma como me receberam, tentarei dar uma resposta positiva dentro de campo. É o que sei fazer. Muito obrigado a quem esteve no aeroporto, no estádio, no centro de treinos. Obrigado, grazie mille!”, acrescentou mais tarde nesse momento solene.

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Em condições normais, CR7 terminaria a carreira no Real Madrid. Quando considerou que o seu tempo tinha acabado e que não era valorizado à luz da relevância que tinha na equipa e na história do clube, não teve problemas em sair. Foi uma decisão arriscada, daquelas que ao longo da carreira foram consideradas por si como desafios. Mais uma vez, está a ganhar. Adaptado a uma nova realidade, envolvido na sociedade transalpina dentro e fora dos relvados, bateu recordes na Serie A italiana, decidiu o primeiro troféu da temporada (Supertaça, frente ao AC Milan) e, naquela que estava a ser a fase menos conseguida em termos individuais e coletivos, arrancou uma exibição de sonho que culminou no primeiro hat-trick pela Juve.

Uma equipa às costas de Ronaldo: Juventus conseguiu virar eliminatória com Atl. Madrid com hat-trick de CR7 (Tullio M. Puglia/Getty Images)

Aos 34 anos, feitos no início do mês passado, Ronaldo continua a representar um mundo à parte no futebol. Por mais que saiba que tão cedo o que faz em campo não sairá da cabeça de várias gerações que têm o privilégio de viver na mesma era do que a sua, quer transportar essas recordações para os números. Para os troféus. Para as estatísticas. Para os recordes. E a grande prova de que existe uma segunda vida pós-Madrid surgiu de novo no estádio onde percebeu que a sua carreira podia ter uma segunda vida. Ali nasceu entre os adeptos uma paixão como jogador visitante. Ali cresceu entre os adeptos um amor como jogador visitado. Ali está a aumentar entre os adeptos um sentimento eterno como um dos melhores jogadores de sempre. Para visitantes, para visitados. Até para quem não goste especialmente de futebol.

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