Ben Affleck “adoraria fazer filmes para a Netflix como realizador”, porque a plataforma americana de “streaming” tem “espírito empreendedor” e “aposta na produção e distribuição de um cinema inclusivo”. Durante um encontro com a imprensa em Madrid, para promoção do novo filme que protagoniza, “Operação Fronteira”, o ator americano evitou, porém, entrar no debate sobre os méritos desta plataforma face à indústria dos estúdios americanos de cinema. “A posição da Netflix enquanto empresa é um assunto complexo que não posso comentar, cabe aos jornalistas fazerem essa análise”, declarou Ben Affleck.

“Operação Fronteira” (“Triple Frontier”, no original) estreia-se em “streaming” esta quarta-feira em todo o mundo, depois de ter surgido a 6 de março em algumas salas dos EUA. O encontro na capital espanhola juntou Ben Affleck, Oscar Isaac, Charlie Hunnam e Garrett Hedlund – bem como o realizador, J.C. Chandor, que em 2012 foi nomeado para o Óscar de Melhor Argumento original com “O Dia Antes do Fim” e se tornou conhecido através de “Quando Tudo Está Perdido”, protagonizado por Robert Redford.

Ben Affleck sublinhou que a Netflix “tem dado trabalho a bons realizadores, como Scorsese, que agora criou ‘The Irishman’, e além do ‘streaming’ tem distribuído filmes diretamente nas salas”, considerando que “não há grande diferença” nas duas maneiras de ver cinema. “Quando aceito entrar num filme, o que me move é a oportunidade de trabalhar com outros atores e realizadores, não me preocupo muito com esses outros aspetos específicos e muito técnicos”, resumiu, evitando entrar em polémicas.

[o trailer de “Operação Fronteira” ]

O assunto regressou nas últimas semanas, depois de a Netflix ter conseguido nomeação para os Óscares deste ano com “Roma”, de Alfonso Cuáron, que valeu ao mexicano a distinção como Melhor Realizador, Melhor Fotografia e entregou à produção o título de Melhor Filme Estrangeiro. O filme estreou-se em salas de cinema de 41 países em novembro e dezembro do ano passado, antes de chegar ao meio digital, o que parece ter demonstrado mais uma vez que a Netflix quer competir diretamente no campeonato da indústria tradicional do cinema e manter-se ao mesmo tempo como alternativa às lógicas tradicionais do grande ecrã, ou seja, como plataforma audiovisual não-linear via internet, com séries e filmes só para assinantes.

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Os estúdios americanos, e a própria indústria de televisão, têm olhado de lado para Netflix e outras plataformas de “streaming” de grande impacto, como a HBO ou a Amazon Prime Video (todas disponíveis em território português). A crítica mais recente veio do diretor-geral da BCC, Tony Hall, segundo o qual as séries da Netflix têm audiências muito abaixo das da estação pública britânica.

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Questionado pelo Observador sobre o tema, J.C. Chandor disse que “estamos numa fase de transição” e “não é muito inteligente enfiarmos a cabeça na areia a fingir que nada se passa”.

“O modelo de negócio do streaming permite a autores como eu jogar num grande campeonato, sem a preocupação dos resultados da bilheteira. A lógica hoje é esta: se um filme não tem boa audiência em sala na primeira semana, é logo retirado e isso deixa-nos sob pressão. Os meus filmes são mais lentos no acolhimento por parte do público, por isso é que nunca tive grandes sucessos de bilheteira”, explicou J.C. Chandor. “Toda a indústria hoje, pelo menos nos EUA, entrou numa bifurcação: há dezenas e dezenas de pequenos filmes, aqueles que ficam abaixo dos 12 milhões de dólares, e depois há os outros, o ‘Star Wars’ ou os heróis da Marvel, que custam centenas e centenas de milhões. Os filmes de que sempre gostei situam-se a meio caminho entre estas duas realidades, têm uma grande componente de entretenimento, mas tentam dizer alguma coisa. Estes serviços estão a preencher essa lacuna.”

Segundo J.C. Chandor, “a enorme base de assinantes” de um serviço de streaming permite “saber exatamente quem vê o quê e alcançar um conhecimento profundo do público”, o que explica a aposta em temas aparentemente menos óbvios e em produções faladas noutras línguas que não o inglês – sendo certo que a plataforma é conhecida por não divulgar dados de audiência de cada produto.

Treino militar com os Seals e a Delta Force

“Operação Fronteira” deu o mote para a dissertação, já que se trata de uma obra inicialmente acolhida pela Paramount, mas congelada durante quase uma década. A realização esteve para ser assinada por Kathryn Bigelow, e Channing Tatum e Tom Hardy chegaram a ser dados como protagonistas, o que nunca se verificou. Agora na versão de Chandor, que reescreveu o guião por 42 vezes, disse, com base num argumento original de Mark Boal, “Operação Fronteira” surge como filme de ação, aviões, tiros, dinheiro e acidentes. “As lealdades são testadas quando cinco ex-soldados das forças especiais planeiam um assalto a um narcotraficante cuja operacionalização vai ter consequências inesperadas”, lê-se na sinopse fornecida pela Netflix.

“Os primeiros 20 ou 30 minutos do filme são em espanhol”, elogiou Oscar Isaac, também conhecido pela saga “Star Wars”. “Acho que o tema da identidade está muito presente no filme, pelo facto de estes homens terem tido de explorar a própria masculinidade quando eram soldados e de repente terem-se visto sem nada, porque voltaram da guerra e entraram numa crise existencial”, o que os leva a aceitar a missão que a longa-metragem retrata.

Charlie Hunnam confirmou que na preparação da rodagem o elenco central recebeu treino militar com forças de operações especiais da marinha americana, os Seals, e com a unidade Delta Force do exército. “Um ambiente que nos permitiu criar laços de confiança uns com os outros, o que tem bastante relevo no filme”, disse. A propósito, e em tom confessional,  acrescentou que “a disciplina e o rigor são valores muito importantes, porque enfrentar os grandes desafios é a melhor forma de conseguirmos uma vida mais feliz e com significado”.

Sobre o assunto do momento, Charlie Hunnam, que muitos recordarão de “Rei Artur: A Lenda da Espada”, de Guy Ritchie, afirmou que “as plataformas de ‘streaming’ criam um espaço para a existência de material mais difícil, mais pequeno e mais original”, mas “salas e ‘streaming’ não precisam de ser realidades em conflito, porque na maior parte dos casos até fornecem serviços diferentes”. “Se me perguntam se os filmes de ‘streaming’ devem ser elegíveis para prémios, incluindo os Óscares, digo que sim, claro. A minha experiência ao entrar neste filme diz-me que a vontade de o fazer e o trabalho investido não difere do que acontece em qualquer outra produção.”

O Observador esteve em Madrid a convite da Netflix