Já todos demos as mãos, formámos uma roda e cantámos canções. Aquela estrutura informal que tanto repetimos na escola primária, no infantário, nas férias do verão. Cantigas simples, tradicionais, que a repetição nos metia nos ouvidos e na boca. Coisas como “As Pombinhas da Catrina”, “Indo Eu, Indo Eu A Caminho De Viseu”, “Ah Ah Ah Minha Machadinha”, coisas que, a convite do produtor e promotor António Miguel Guimarães ganharam forma no palco do Sol da Caparica, em 2015, no último dia do festival almadense, que é sempre centrado nas crianças e no público infantil.

Ana Bacalhau, Sérgio Godinho, Vitorino e Samuel Úria foram os músicos convidados para trabalhar estes temas do cancioneiro popular português, com arranjos de Filipe Raposo. Agora, quatro anos anos depois, o concerto materializa-se no disco (em formato livro, de capa rija, com ilustrações da também música Cláudia Guerreiro) Canções de Roda, Lenga Lengas e Outras Que Tais, com Jorge Benvinda, dos Virgem Suta, no lugar de Samuel Úria. São vinte temas onde se encontram contos escritos (e ditos) pelos próprios, bem como canções originais, do repertório de cada um. De certa maneira este é um disco que reúne Portugal, Ana Bacalhau é de Lisboa, Sérgio Godinho é do Porto, Vitorino é do Redondo, no Alentejo, e Jorge Benvinda é de Beja. Nestas e em tantas outras regiões portuguesas vivem ainda estas canções “que são da tradição oral, que foram passando e ganhando versões”, explica Sérgio Godinho.

São vinte temas, mas podiam ser mais. O processo de seleção, garante Ana Bacalhau, foi “super pacífico”. “Tínhamos uma lista maior, mas queríamos ter um lote de canções diversificado e coerente, esses foram os principais critérios, e canções que nos dissessem alguma coisa, claro”. E isso significa, por exemplo, que cantigas como “A Loja do Mestre André” ou “Malhão” não couberam nesta lista. Algo perfeitamente natural, porque o cancioneiro verbal é praticamente infinito, e uma leva a outra e outra, que, por esquecimento perante uma grande lista – um bocado como quando nos perdemos numa enumeração – fica para trás:

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“Foi-nos também solicitado, quando aparece a história do disco, um conto, dito pelo próprio. Nessa altura não tinha muito presente o repertório escolhido e comecei a fazer uma variante sobre ‘A Saia da Carolina’, mas pensando que seria uma versão alternativa à canção que estava no disco, depois com surpresa descobri que ‘A Saia da Carolina’ não estava, o concerto já tinha sido há muito tempo. O que isto quer dizer é que estas canções estão na nossa memória de tal maneira que é como se tivessem outras que não estão, é curioso”, afirma Sérgio Godinho.

Assim que se escuta o disco, surge uma outra ideia. Estas cançoes formam um património que nos pertence a todos. Apesar de ser uma fórmula que muito pode agradar aos mais novos, isto é para ouvidos de todas as idades. É impossível não nos rirmos, não ficarmos nostálgicos quando ouvimos uma maravilhosa “Oliveirinha da Serra”, cantada por Ana Bacalhau e Sérgio Godinho ou “Ah Ah Ah Minha Machadinha”, por Ana Bacalhau e Jorge Benvinda. Portanto, as crianças que nos desculpem, bem sabemos que os adultos devem ficar no seu lugar, mas neste caso isto também é nosso:

“Se pensarmos bem, as canções preferidas das crianças são também canções para adultos. Já tive crianças, na rua ou em concertos, a virem-me dizer que gostam muito desta ou daquela música, e esses temas não foram feitos necessariamente para eles, foram feitos para seres humanos, com cabeça e crítica”, diz Ana Bacalhau, sugerindo que estas não são, necessariamente canções infantis.

E criando uma imagem, olhando para estes tempos onde as crianças adoram funk de favela e Ariana Grande, onde os ecrãs estão por todo o lado, às vezes até ao jantar, para ver se se come a papa, este disco ou projeto ou como lhe quiserem chamar parece vir em muito boa altura. “Atenção, a gente não está a fazer nenhuma guerra, é natural que as várias gerações oiçam várias coisas, esses universos podem e devem coexistir. Mas sim, sem que tenha sido o intuito primeiro, acaba também por ser um esforço de preservação de um património que é da memória e que é muito rico”, explica Sérgio Godinho. Finalmente temos um objeto que reúne muitas destas canções que não podíamos simplesmente escolher ouvir, tínhamos que cantar, não estavam editadas em coisa nenhuma.

Ainda que, convenhamos, não possamos ignorar o passado. Em Portugal, já alguns discos foram feitos neste sentido, de capturar essa memória, de dar de ouvir aos mais novos. O programa da RTP, estreado em 1976, “O Fungagá da Bicharada”, com participação de José Barata Moura, filósofo, cantor e compositor que nos deu muitas das canções que compunham o programa e que depois ficaram editadas em disco. Tal como o EP “Olha a Bola Manel”, entre outros materiais. O próprio Vitorino editou “Cantigas de Encantar” (1989), e mais recente em 2010, B Fachada fez B Fachada é pra meninos e os Clã gravaram o Disco Voador, em 2011.

Por falar em passado, decidimos pedir aos quatro músicos que nos falassem do lugar para o qual este disco os levou, sim, porque é inevitável que a viagem à infância seja feito à boleia destas canções.

Ana Bacalhau recuperou cheiros e sons: “Este disco resgatou muitas memórias, sim. Pessoas que já cá não estão, os meus avós, da minha escola primária, brincar no recreio ou no largo da aldeia da minha avó, esses pormenores, cheiros, sons, momentos bem passados em família, tudo isso”.

Sérgio Godinho voltou, com os pais, ao Minho: “Os meus pais cantavam muito, a minha mãe tocava muito bem piano, tinha o curso superior, e o meu pai era um melómano, gostava muito de música. Eles harmonizavam muito bem, sentia esses momentos como espaços de harmonia, era um grande prazer ouvi-los cantar, às vezes eram canções do imaginário popular, lembro-me da ‘agora é que pinta o bago, ai agora é que anda o pintor’. Sou do Porto, mas digo sempre que um bocado minhoto, íamos muito lá, e canta-se com facilidade, as pessoas são muito exteriorizadas, a música está sempre muito presente, tudo isso se mistura muito na minha cabeça”.

Vitorino reforçou a sua memória feliz, com a natureza: “Este disco fez o apelo à minha memória…o quão feliz foi a minha infância, num largo que era do tamanho do universo, um largo que não acabava, 70 metros para lá da minha casa e entrava no campo, entrava nos ninhos, mas não os derrubava, sempre gostei muito de passarinhos e até me arrepiava quando o meu irmão Zézinho, que atirava bem à fisga, e matava pintasilgos. Reparei que fui muito feliz, cantar estas canções tinha essa relação muito íntima com a natureza, as vivências na natureza, ‘no alto daquela serra está um lenço de mil cores, viva quem ama, morra quem não tem amores’, foi a primeira canção que gravei, para a Orfeu”.

E Jorge Benvinda acabou a saltar à corda: “Já não tenho os meus pais e os meus avós, o pessoal já foi todo, e cantar estas canções criou-me a imagem de estar em casa, só com dois canais, televisão a preto-e-branco, só com dois canais, e a brincar com as minhas irmãs e a cantarolar, ou a andar à pancada. Mas sobretudo os recreios, esse espaço, saltar à corda, tudo assim”.

Uma coisa é certa: já temos prenda para o ano inteiro, para todas as festividades. Canções de Roda, Lenga Lengas e Outras Que Tais é um disco para toda a família, para crianças de todas as idades.