Título: “Vidas e Vozes do Mar e do Peixe”
Autores: Maria Manuel Valagão e Nídia Braz
Fotografia: Vasco Célio
Editora: Tinta da China
Páginas: 304
(Edição inglesa também disponível)
Preço: 34,90 €
Qualquer elogio das regiões — que não é o mesmo que da regionalização — tem de passar necessariamente pelo seu melhor conhecimento ou re-conhecimento, pela percepção de que elas constituem unidades identitárias atestadas por um considerável número de atributos originais e perenes que as distingue, adentro do pequeno Portugal, do que existe a cem ou duzentos quilómetros de distância. (Gonçalo Ribeiro Telles sempre sublinhou que regiões são corpos naturais, não administrativos ou burocráticos.) Traços culturais também recortam o país em lotes diferenciados, por pouco contrastados ou contrastivos que sejam ou pareçam ser, donde é lícito concluir que só abordagens transversais podem tirar, das regiões, retratos fiéis e completos.
Livros têm sempre um contributo generoso a dar a inquéritos deste tipo, quanto mais não seja como registos para memória futura de realidades locais ou regionais sujeitas a uma forte erosão demográfica e ambiental, com grandes manchas de desertificação humana e económica a facilitarem flagelos dificilmente debelados, de que a terra queimada é só a sua expressão mais dramática e mediatizada. Regiões periféricas ficam à margem do soundbyte rotineiro em que futilmente se ocupa o nosso tempo (embora também elas sejam letra e espírito do que profundamente somos) e, por força da centralização informativa dominante, muitos modos de vida de expressão localizada — microequilíbrios sensatos mas frágeis — podem estar em risco de colapso ou extinção sem que o grosso do país sequer se dê conta disso. E, inversamente, o que de bom e novo aí vai acontecendo — até com o influxo dado por gente de fora que escolheu o país para viver e trabalhar — não chega até todos, para nos servir de estímulo ou de esperança.
Três anos depois de terem publicado Algarve Mediterrânico. Tradição, produtos e cozinhas (com Bertílio Gomes), Maria Manuel Valadão e Vasco Célio reincidem com este Vidas e Vozes do Mar e do Peixe (com Nídia Braz), dois livros que se complementam e convocam a todo o tempo — quem conheça um não dispensará o outro — e representam para o Algarve como região o que de mais completo e contemporâneo terá sido feito nas décadas mais recentes, quase fazendo esquecer o trabalho de Alfredo Saramago Cozinha Algarvia: enquadramento histórico e receitas (Assírio & Alvim, 2001, 228 pp.; fotografias de Inês Gonçalves) ou o mais específico e directo Sabores da Cozinha Algarvia de José Vila (2001; Clube do Autor, 2010, 112 pp., nesta segunda edição apresentado por Miguel Sousa Tavares e António-Pedro Vasconcelos).

Artes de Pesca em Quarteira
Como raramente sucede, os dois trios aparecem nas páginas finais destes livros da Tinta da China em retratos de grupo, sorridentes e satisfeitos nos ambientes de beira-mar que são todo o seu habitat autoral (também natural…), o que nos dá boa conta — e não o acho irrelevante — do gosto e prazer partilhados com que certamente fizeram o seu trabalho. Aliás, também cuidado e zelo, aplicados, por exemplo, no anexo “Conhecer os peixes, cefalópodes e mariscos” (pp. 272-87), de mar e rio, com avisos de sustentabilidade e segurança, em “Glossários” das artes da pesca e do sal neste volume, e da alimentação popular no de 2015, que também incluiu abundantes dados de «composição nutricional».
Receituário popular é fixado para uso e deleite de gente nova ou distante, e a par de casos de inovação e contemporaneidade gastronómicas dá-se atenção a recentes e alternativos circuitos de proximidade na distribuição de pescado fresco, tanto quanto ao elogio da ancestral e sábia economia circular: “hortaliças em troca de marisco, aguardente de medronho e mel em troca de peixe, etc.” (pp. 25-26). As histórias de vida e os saberes de ofício dos pescadores artesanais e dos homens das salinas são-nos dados de viva voz, em depoimentos que as autoras recolheram de barlavento a sotavento, boa gente que Vasco Célio fotografou em momentos de faina ou em “trajes domingueiros” e de barba feita, como Joaquim Bloco, da Fuzeta (p. 132), e Toino Rio, de Raposeira, Sagres (p. 105).
A “segunda vida do peixe” — a de alimento humano — percorre os ambientes dos prestigiados mercados de Olhão e Loulé, onde vendedores de banca se cruzam com chefes cozinheiros portugueses e estrangeiros que ali abastecem os seus restaurantes. Dieter Koschina, fotografado a sair do mar de noite segurando pelas guelras dois imponentes pregados (p. 256 — realmente, uma das melhores fotografias dese livro), “é um entusiasta e um apaixonado pela qualidade do peixe do Algarve”, onde trabalha há quase duas décadas. A imprevisibilidade sazonal da pesca artesanal nos ecosistemas privilegiados das águas batidas da Carrapateira e Sagres ou carregadas de nutrientes da foz do Guadiana e das rias de barreira de Olhão e Alvor, tem puxado a atenção destes cozinheiros para espécimens marinhas “secundarizadas”, que parecem dispostos a valorizar com a sua “criatividade culinária”, em favor de uma “nova pedagogia alimentar” e de “práticas mais responsáveis” que aliviem a pressão da sobrepesca sobre certos peixes. E curiosamente, essa reconquista de biodiversidade faz-se retomando práticas antigas, como a de cozinhar ovas ou a leituga, a estupeta, a moxama e a espinheta do atum (pp. 236-38).

Fotografias de Vasco Célio
Uma vez mais, a penúria dos tempos idos veio ensinar o máximo aproveitamento das matérias-primas disponíveis, e o que outrora foi recurso de subsistência ganha hoje etiqueta de sábia e indispensável sustentabilidade, com a qual temos cada vez mais de saber viver, se quisermos realmente poder viver. E simultaneamente, o acréscimo de procura por certas espécies está a vivificar “artes de pesca” em declínio, conservando um património técnico que corria risco de perder-se. Particularmente interessante é o capítulo “Conservação tradicional”, baseado uma vez mais em depoimentos directos, aqui e ali em alguma bibliografia (como Silva Lopes, 1841), sobretudo a secagem ao sol ou à sombra (dita: ao ar), com épocas específicas para certos peixes e moluscos escalados, esticados com tiras de cana verde seccionada — e que parece ressurgir diante do monopólio das novas técnicas de conservação refrigerada.
Pode por isso dizer-se que este livro está cheio de lições para um futuro regional que, a partir de recursos naturais verdadeiramente caprichosos em sal, peixe e marisco (“este paraíso no planeta”, p. 189) — e mais recentemente, de piscicultura de fraca densidade e qualidade bem controlada — se projecte como plataforma exemplar de boas práticas, desde pesca dita responsável e indústria conserveira de nova geração até comércio de proximidade (os chamados “circuitos curtos de comercialização”) ou previamente dirigido a clientes exclusivos, locais, nacionais ou internacionais, fazendo valer e conhecer o prestígio, a qualidade e a dignidade do pescado algarvio.
O livro acaba da melhor maneira (e caramba, já não era sem tempo!): vinte páginas de receitas regionais, desde uma sopa de cabeças de besugo, choupa, safia e sargo ou uma canja de conquilhas, até polvo no forno com batata-doce, e moreia frita. Não há, de facto, que apeteça mais, na languidez dum tempo livre que a beira do mar perfumado oferece como contratempo à vida moderna…