Numa das últimas entrevistas que deu, Scott Walker deixou uma frase chave para compreendermos a vontade criativa que transformou em música e canções: “Sinto que a letra vai sempre guiar-te, vai sempre dizer-te o que tens de fazer com a música. Acerta na letra, tudo o resto acontece depois naturalmente”. Por isso foi de ídolo adolescente a destemido autor de experiências sonoras, passou de parte de uma banda a artista por conta própria.

Cantou anseios de quem é jovem, cantigas de amor, outras de desilusão e muitas de incompreensão total face ao mundo. Em todas as ocasiões procurou sempre explorar aquilo que nos torna vulneráveis. Fez tudo isto através de um corpo de trabalho único, influenciando muitos que nele encontraram um exemplo de insatisfação criativa. Scott Walker foi um dos intérpretes e compositores mais surpreendentes e misteriosos dos últimos 60 anos. Morreu esta segunda-feira, dia 25 de março, aos 76 anos.

A notícia foi avançada pela editora do músico britânico, a 4AD. “É com grande tristeza que anunciamos a morte de Scott Walker”, pode ler-se na nota publicada pela editora. “Durante meio século, o génio do homem nascido sob o nome Noel Scott Engel enriqueceu as vidas de milhares [de pessoas], primeiro como um terço dos The Walker Brothers e depois como artista a solo, produtor e compositor de uma originalidade inflexível.”

[“Make it Easy On Yourself”, dum dos primeiros sucessos dos The Walker Brothers:]

Scott Walker chegou à fama em meados dos anos 60, quando fazia parte da banda The Walker Brothers, que formou com John Joseph Maus e Gary Leeds (na verdade, nenhum deles era “Walker”). A pop barroca, emocionalmente densa, feita de harmonias e arranjos grandiosos do grupo abriu caminho para o que Scott faria em nome próprio, depois de enveredar pelos álbuns a solo, com a série de discos Scott a Scott 4, considerados, segundo o Guardian, alguns dos álbuns pop “mais aventureiros da época”. O seu trabalho mais recente foi a música composta para o filme “Vox Lux”, realizado por Brady Corbet, com Natalie Portman como protagonista

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De ídolo adolescente a ícone cultural, deixa um legado de música extraordinária para as gerações futuras; letrista brilhante com uma voz comovente, foi um dos mais reverenciados inovadores na ponta da lança da música criativa, cuja influência sobre muitos artistas foi amplamente reconhecida”, escreve a mesma nota da 4AD sobre a morte de Walker.

[“Jackie”, do álbum Scott 2:]

Scott Walker nasceu em Hamilton, em Ohio, em 1943, e cresceu na Califórnia, apesar de cedo assumir a sua postura cética e irónica em relação à cultura californiana, aos estereótipos da vida à beira do Pacífico. Não por acaso, foi no Reino Unido que acabou por conquistar mais sucesso e mais cedo. Em 1965 muda-se para Inglaterra e poucos anos depois é-lhe atribuída a nacionalidade britânica. A propósito da morte do músico, a também britânica BBC lembrou-o como influência importante para nomes de diferentes gerações, cantores e compositores tão distintos como David Bowie ou Jarvis Cocker. Foi “uma das mais enigmáticas figuras” da história do rock.

O vocalista dos Radiohead, Thom Yorke, citado pelo Guardian, descreve Walker como “uma enorme influência para os Radiohead” e para si, que lhe mostrou como usar a sua “voz e palavras”.

Medidor das tendências contemporâneas da música popular, o Spotify tem em “The Old Man’s Back Again” a canção de Scott Walker que mais roda. Faz parte do álbum Scott 4, editado em 1969. Contas feitas, o disco tem 50 anos, não é o espelho da criatividade mais recente de Scott Walker, mas é essencial para compreender um aspeto fundamental do percurso do músico e compositor: mesmo a partir da estrutura pop mais tradicional, Scott Walker esteve sempre à parte. Porque a voz guardava características únicas que lhe permitiam explorar dimensões distintas onde quase todos os outros se ficavam pela construção mais previsível. E porque a ambição de fazer novo, de fazer diferente, de chegar onde nenhum outro crooner pop tinha chegado antes o levou a ser mais, muito mais, que um derivado dos Walker Brothers.

[“The Old Man’s Back Again”:]

Por isso foi mudando, essencialmente porque nunca teve problemas com isso, só tinha problemas em não mudar. Já depois de ter iniciado a sua carreira a solo, Scott integra a reunião dos The Walker Brothers, concentrada no tempo entre 1975 e 1978. Um reencontro que acabou por dar-lhe a certeza para o que haveria de seguir-se. E estava tudo no último álbum feito pelo trio, Nite Flights, com as composições repartidas por cada um dos músicos — as de Scott Walker mostravam já um desejo de seguir por caminhos menos óbvios.

Em 1984 lança Climate of Hunter, em 1995 atira Tilt. E nunca mais Scott Walker foi o mesmo. Fez-se artista da densidade sonora, construindo ambientes e moldando-os à sua vontade. Scott, o artista da canção, tornou-se o artista da matéria. Já anunciava que poderia ir por aí, quando nos seus primeiros álbuns a solo exibia as notas da própria voz como se estivesse maravilhado com as suas próprias capacidades, como se pensasse “basta-me isto para chegar a algum lado que ainda não conheço”.

Nesse território por explorar acabou por encontrar conforto, mesmo que aos nossos ouvidos nem sempre tenha soado assim tão simples. Por exemplo: em The Drift, disco de 2006, depois de uma ausência de vários anos, Scott Walker é quase violento, é áspero, não quer fazer amigos, não está minimamente interessado em dar a conhecer as coisas bonitas do mundo, da vida ou dele próprio, porque na verdade, naquele disco nada disso existe. É um monumento rochoso em honra da frieza, do medo e do terror.

[“The Cossacks Are Here”, do álbum “the Drift”:]

E ainda assim, estranhamente viciante. E em Bish Bosch, de 2012, convida os sugadores de almas Sunn O))), que usam carimbos como ambient metal ou drone metal para construir um disco de um encantamento assustador, que nos leva a pensar “se gostar disto é sinal de que algo está errado comigo?”.

[“See You Don’t Bump His Head”, de “Bish Bosch”:]

E provavelmente até será esse o caso, mas era esse um dos aspetos fundamentais da obra de Scott Walker. Fazer o desgraçado do ouvinte pensar que estas canções tinham vindo ao mundo porque alguma espécie de diabo assim quis, porque merecemos este inferno muito particular. E se lhe dermos espaço ficamos a gostar dele, o que é ainda mais preocupante — ou então é uma sorte, tudo depende da interpretação. A de Scott Walker era a de que tudo é possível.