Se havia um realizador que podia deixar uma profunda e legível impressão digital numa versão em imagem real e com efeitos especiais das longas-metragens animadas clássicas de Walt Disney, esse realizador era Tim Burton. E foi exatamente isso que ele fez em “Dumbo”, a nova incarnação da animação que Disney assinou em 1941, juntando o seu filme às adaptações recentes mais conseguidas deste projeto do estúdio, “Cinderela”, de Kenneth Branagh, e “O Livro da Selva”, de Jon Favreau. Mas onde estas duas são versões muito institucionais, extremamente chegadas, na letra e no espírito, às respetivas animações, o “Dumbo” de Burton, embora mantendo-se leal à essência da história do de Walt Disney, ao seu tema e aos seus valores, é passado pelo filtro da sensibilidade e da identidade visual do realizador.

[Veja o “trailer” do “Dumbo” de Walt Disney:]

https://youtu.be/Biigna1PMOw

O “Dumbo” de Disney é uma história de animais falantes e antropomorfizados. O de Tim Burton substitui os animais por humanos: os que rodeiam Dumbo para o proteger e lhe fazer bem, ou para o explorar e magoar. Os principais são os pequenos Milly e Joe Farrier (Nico Parker e Finley Hobbins), que treinam Dumbo para voar; o seu pai, Holt Farrier (Colin Farrell), que perdeu um braço na I Guerra Mundial (a fita passa-se em 1919) e a mulher para a gripe espanhola, e já não pode fazer o seu número de acrobacias a cavalo; Max Medici (Danny DeVito), o dono do circo decadente onde Dumbo nasce; V.A. Vandevere (Michael Keaton), o empresário ganancioso que compra o circo de Medici para fazer de Dumbo uma atracção lucrativa, e Colette (Eva Green) a trapezista francesa que monta o elefantezinho voador num espectacular número.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[Veja o “trailer” do novo “Dumbo”:]

Apesar desta recentragem aparentemente “realista” da história (o argumento é de Ehren Kruger), Tim Burton manteve intacta a mensagem inspiradora da animação de Walt Disney – o elefantezinho das orelhas invulgarmente grandes parece ser uma aberração, mas afinal é uma criatura única, porque aquelas lhe permitem voar –, a sua mescla de feérie e de tristeza, o sentido de humor e a singeleza emocional (conseguindo mesmo ser menos piegas do que Disney foi na fita de 1941). Ou seja, este novo “Dumbo” continua a ser no âmago o de Walt Disney, mas revisitado, reestruturado e expandido por Tim Burton, que também preservou na banda sonora (de Danny Elfman), algumas das canções originais da dupla Frank Churchill/Oliver Wallace, com novas interpretações ou em versões instrumentais (caso da genial “Pink Elephants on Parade”.)

[Veja uma entrevista com Tim Burton:]

O realizador de “Ed Wood” e “Frankenweenie” percebeu também que “Dumbo” não podia ser um filme cruamente “realista”. Isso iria comprometer drasticamente a credibilidade, a graça e capacidade de empatia com o elefantezinho voador (uma criação dos efeitos digitais), que está necessariamente  antropomorfizado, mas apenas na proporção essencial, e abafar toda a envolvência circense do filme e o encantamento e o arrebatamento que vêm com ela. Assim, Tim Burton, através de uma leve e omnipresente estilização, aproxima a fita do universo da banda desenhada e torna-o numa fantasia de rosto “verista”, com uma dimensão de ficção científica (ver a Dreamland do cúpido Vandevere e toda a sua tecnologia de sabor retrofuturista).

[Veja uma entrevista com Colin Farrell, Eva Green e Danny DeVito:]

Dumbo” inscreve-se também num subgénero outrora com presença regular no cinema americano, o “circus movie”, o filme passado em ambiente de circo, que, além do próprio “Dumbo” de Walt Disney, nos deu títulos como “O Circo”, de Charlie Chaplin, “A Parada dos Monstros”, de Tod Browning, “Um Dia no Circo”, com os Irmãos Marx, “O Maior Espectáculo do Mundo”, de Cecil B. DeMille, ou “O Mundo do Circo”, de Henry Hathaway, e que há muitos anos não se manifestava na tela. E o final da fita, ambientado muito longe de onde começou, está mais de acordo com a maneira como hoje concebemos o lugar e a função dos animais selvagens no circo.

[Veja uma entrevista com os pequenos Finley Hobbins e Nico Parker:]

Também perto do fim de “Dumbo”, Tim Burton mostra a pequena Milly, que deseja ardentemente ser cientista quando crescer, deleitada com a sua nova atração do renovado Circo Mancini: uma tenda onde revela ao público o que o futuro lhe reserva em matéria de inovações da ciência e da tecnologia. E o realizador põe Milly a exibir um filme mudo e a preto e branco em que Colette voa no dorso do elefantezinho. O cinema, é, assim, uma das mais extraordinárias invenções que a menina anuncia para os tempos que hão de vir. E “Dumbo” é um filme que congrega o melhor de dois mundos cinematográficos: o de Walt Disney e o de Tim Burton. Que começou a sua carreira como aprendiz de animador nos Estúdios Disney, há quase 40 anos.