Na semana passada, quando um importante museu britânico decidiu rejeitar uma doação de 1,2 milhões de euros com origem numa poderosa família americana, houve uma artista radiante com a decisão: a fotógrafa americana Nan Goldin, que se tornou célebre nos anos 80 pelas imagens de violência e sexualidade. Nan Goldin considera-se uma das vítimas da “crise de opiáceos” que assola os EUA, com milhares de mortes atribuídas à dependência do analgésico OxyContin, vendido desde 1996 pelo laboratório Purdue Pharma, da família Sackler – a mesma família a que agora se fecharam as portas da National Portrait Gallery de Londres e de outras instituições culturais dos dois lados do Atlântico.

Depois do anúncio da National Portrait Gallery (através de um comunicado conjunto com a Sackler Trust, instituição de beneficência da Purdue Pharma no Reino Unido), outros dois pesos-pesados decidiram prescindir de ofertas dos Sacklers: a Tate britânica e o Museu Guggenheim de Nova Iorque. A seguir, a South London Gallery disse ter devolvido mais de 145 mil euros aos Sacklers e a Universidade de Washington anunciou que irá por termo a um programa de pós-doutoramentos apoiado pela mesma família. “As peças do dominó vão continuar a cair”, congratulou-se Nan Goldin na rede social Twitter.

Questionado esta semana pelo Observador, o curador João Fernandes – subdiretor do Museu Rainha Sofia, em Madrid, e antigo diretor do Museu de Serralves – disse que este caso integra um movimento mais vasto que nos últimos anos tem posto em causa as políticas dos museus, incluindo a forma como são geridos, como constroem as suas coleções de arte e como funcionam internamente. “Há hoje uma maior exigência da sociedade”, afirmou, o que explica debates sobre a representação de mulheres artistas nas coleções, a forma como os museus tratam o período colonial ou as próprias relações laborais dentro das instituições.

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A diretora executiva da Tate, Maria Balshaw, fez questão de se explicar num dos principais programas de informação da BBC. E o Guggenheim, em cujo conselho de administração teve assento até ao ano passado um representante dos Sacklers, revelou que entre 1995 e 2015 recebeu cerca de nove milhões de euros da família, incluindo sete milhões para a criação do Centro Sackler para Educação e Arte. Desde 2015, o Guggenheim não recebeu doações com a mesma origem e “tenciona não as aceitar” nos próximos tempos.

O Observador tentou contactar Nan Goldin, sem êxito, através da galeria americana Marian Goodman – a mesma que representa Chantal Akerman, Tacita Dean, Gerhard Richter, Jeff Wall ou a portuguesa Leonor Antunes.

“Dinheiro manchado de sangue”

O ativismo de Nan Goldin contra os Sacklers começou oficialmente em janeiro do ano passado, ao publicar um artigo no site “Art Forum”, acompanhado de fotografias do período em que esteve dependente de OxyContin. Dizia ter conseguido libertar-se do medicamento depois de dois meses e meio de desintoxicação e classificava-o como “o mais viciante dos analgésicos em toda a história da farmacologia”. Só em 2015 nos EUA, escreveu Nan Goldin, “mais de 33 mil pessoas morreram por overdose de opiáceos, metade dos quais receitados por médicos”.

Nan Goldin, que se sabe ter sido heroinómana nos anos 70 e 80, anunciava no mesmo artigo a criação do grupo PAIN (Prescription Addiction Intervention Now), com forte presença nas redes sociais e a missão de escrutinar a Purdue Pharma. “Eles usam museus e universidades de todo o mundo para lavagem de dinheiro manchado de sangue”, acusava a fotógrafa.

Já em 2016, uma investigação dos “Los Angeles Times” tinha exposto os perigos dos analgésicos, e deste em particular, bem como a alegada negligência da farmacêutica no reconhecimento do perigo de dependência e a criação de campanhas de marketing para uma imagem inofensiva do medicamento.

“Mais forte do que a morfina”

O OxyContin esteve à venda em Portugal há cerca de oito anos e foi retirado do mercado “por motivo de inviabilidade comercial”, disse nesta quarta-feira ao Observador Isabel Roquete, diretora de comunicação da sucursal portuguesa da Purdue Pharma. Trata-se de um “analgésico potente do grupo dos opiáceos”, prescrito para “alívio da dor intensa a muito intensa” e cuja substância ativa é o cloridrato de oxicodona, de acordo com a bula de 2010, disponível no site da autoridade do medicamento, o Infarmed. Uma notícia do jornal “The Guardian” descreveu-o como mais “mais forte do que a morfina”.

A bula faz várias advertências que o cidadão comum pode considerar alarmantes: “O uso prolongado de OxyContin pode originar dependência física” e “estes comprimidos devem ser evitados em doentes com história passada ou presente de abuso de álcool ou drogas”. A “dependência física, incluindo sintomas de privação”, é considerada um efeito secundário “pouco frequente”, que afetará até 10 pessoas em cada mil, lê-se.

A empresa autorizada pelo Infarmed a vender o medicamento em Portugal foi a Mundipharma, ligada à Purdue. O site da Mundipharma Portugal fala de “uma empresa farmacêutica inovadora americana que se estabeleceu em Portugal em 2015, como parte da rede de empresas independentes Purdue-Mundipharma-Napp”. Encontram-se também referências diretas à família Sackler: “A nossa origem foi sustentada pelo empreendedorismo, humildade e generosidade de uma família da Europa de Leste que emigrou para os EUA, a família Sackler. A cultura empresarial instaurada pelos irmãos Mortimer e Raymond Sackler tem sido a base do sucesso.”

Questionada sobre se a Mundipharma financia em Portugal alguma instituição cultural ou de ensino, a sucursal portuguesa fez saber que “apoia de forma continuada” uma iniciativa benemérita da Associação Dignitude, instituição particular de solidariedade social, e “apoia pontualmente” eventos como o “4InMed”, da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.

Herdeira concorda com campanha

A família Sackler tem uma fortuna de 12 mil milhões de euros, calcula a revista “Forbes”, e faz filantropia desde a década de 70, o que explica a larga influência sobre inúmeras instituições culturais e de ensino. “Uma das mais relevantes dinastias filantrópicas do mundo”, classificou o “New York Times”. O Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque, tem uma sala com o nome Sackler e o mesmo acontece no Louvre, por exemplo, o que testemunha a influência dos Sackler mas também uma histórica prática anglo-saxónica, rara em Portugal, de beneficência por parte de empresários e famílias milionárias.

A origem da fortuna está em Isaac Sackler e Sophie Greenberg, imigrantes judeus da atual Ucrânia e da atual Polónia que chegaram à América no início do século XX. Deixaram três descendentes, Arthur, Mortimer e Raymond, que estudaram psiquiatria e fundaram um pequeno laboratório farmacêutico em Greenwich Village, origem da Purdue, hoje com sede no estado do Connecticut. Elizabeth Sackler, neta de Isaac e filha de Arthur, tem defendido a campanha de Nan Goldin e diz que o ramo da família a que pertence não beneficia das vendas do OxyContin, que classificou como “moralmente repugnante”.

Theresa Sackler, presidente da Sackler Trust (diz representar apenas uma parte da família no Reino Unido), escreveu no site da instituição que “lamenta profundamente a crise de dependência” nos EUA e lembrou que a Purdue Pharma “tem tomado iniciativas para ajudar a reduzir a situação”. Em Portugal, existe o site SOS Overdose, em conjunto com a organização não-governamental Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT), mas não foi possível esclarecer se tem ligação à Sackler Trust.

Entretanto, a Sackler Trust “tomou a difícil decisão de suspender temporariamente novas doações filantrópicas”, acrescentou a presidente. A mesmo responsável rejeitou as “falsas alegações” contra a família e a empresa, mas ainda na terça-feira a imprensa americana noticiou que a Purdue chegou a acordo extrajudicial no sentido de doar 240 milhões de euros ao estado do Oklahoma, como forma de compensação pelas mortes causados por overdose de opiáceos. Pelas mesmas razões, esta e outras farmacêuticas enfrentam agora mais de dois mil processos em tribunal em vários estados americanos.

Generosidade ou construção de imagem?

Para João Fernandes, as instituições culturais “sentem necessidade de se protegerem de comportamentos que a sociedade considera menos éticos” e “cada vez mais precisam de ser muito exigentes e transparentes face ao financiamento”, porque “o compromisso de um museu é para com a obra de arte, o público e os artistas”, disse ao Observador.

“Os museus estão a ser reavaliados, e ainda bem, porque de certo modo foram sempre expressão de formas de poder e é importante fazerem essa descolonização, isso é sintoma de uma maior democraticidade e exigência da sociedade civil, o que não quer dizer que deva haver cedências a ideias politicamente corretas que hoje perturbam a liberdade de expressão nos museus e provocam situações de censura e de autocensura”, afirmou.

O subdiretor do Museu Rainha Sofia acredita ser “evidente” que “muitas vezes a generosidade dos mecenas pode ser uma forma de se legitimarem e de construírem uma imagem”, mas “a relação mecenática com uma instituição deve primar apenas pela generosidade”. “Esse exercício de legitimação existirá sempre, por isso, tal como no Rainha Sofia, é importante a criação de códigos de conduta que protejam as instituições de possíveis conflitos de interesses relativamente às doações”.