“Nunca caminhou pelos caminhos de Deus uma criatura mais deplorável e doente”. Foi desta forma que Abraham Bartlett reagiu quando viu Jumbo pela primeira vez. Em 1865, três anos depois de o animal ter sido capturado em Abisinia, na Etiópia, Abraham, o responsável máximo pelo zoo de Londres, soube que Paris estava prestes a receber o enorme mamífero. Agiu e prontamente conseguiu “desviá-lo” a troco de um rinoceronte.

De acordo com um artigo do El País, este é um dos primeiros momentos que viriam a criar a história de “Dumbo”, a famosa personagem da Disney que ganhou nova vida cinematográfica há poucos dias, pela mão do carismático Tim Burton e com a ajuda de atores como Danny DeVito, Colin Farrell e Michael Keaton. Todos gostam do simpático elefante voador dos “desenhos-animados”, todos se afeiçoaram à sua história, mas a verdade é que a realidade que ela esconde é tudo menos alegre.

Pensa-se que “Jumbo”, que inicialmente foi batizado de “Jambo” (que significa “Olá” no dialeto africano suaíli), tinha cerca de dois anos e meio quando foi capturado — a sua mãe terá morrido durante esse processo. Inicialmente tinha como destino a capital francesa, paragem que ninguém acreditava ser possível alcançar com o animal ainda vivo. Acabou por sobreviver, mas num estado lastimável — daí a citação de Bartlett que abre este texto.

Na altura, em Londres, a probabilidade de se conseguir encontrar um elefante africano em cativeiro era poucas ou quase nenhumas. Existiam alguns asiáticos, mais pequenos e dóceis, mas africanos quase nunca ninguém tinha visto. A vontade de querer valorizar o “trunfo” que lhe tinha chegado às mãos, fez com que Bartlett apostasse tudo na recuperação do animal, deixando-o aos cuidados de um tratador chamado Matthew Scott que, apesar de não ter muita experiência, era um sujeito singular — dormiu com o elefante, na sua jaula, durante seis meses, criando com isso um laço emocional tal que só se desfez na hora da morte.

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O relato de algumas histórias está presente nas memórias que Scott escreveu e que falam de como o tratador conseguiu recuperar Jumbo e, com isso, criar uma relação de proximidade tal que o elefante não conseguia estar muito tempo afastado do seu cuidador — nada de estranhar, dada a já conhecida alta sociabilidade destes mamíferos. A lealdade chegou a ser tal que Jumbo preferiu Scott a Alice, uma fêmea com quem o tentaram emparelhar.

A estrela de Londres que carregou o menino Churchill

Aos poucos, Jumbo tornou-se num autêntico ícone em Londres, gozando de 15 anos de sucesso e admiração generalizado, isto até 1880, o momento em que se transformou naquilo que o jornal espanhol explica ser “uma espécie de “doctor Jekyll e Mister Hyde”. De dia era a imagem viva da amabilidade e ternura, fazendo a delícia dos mais pequenos que passeavam pelo Jardim Zoológico às suas costas — até um jovem Winston Churchill chegou a apanhar boleia do paquiderme. À noite, porém, era tudo diferente: Jumbo tinha acessos de violência onde destruía tudo à sua volta, comportamento que Bartlett justificou de forma científica e pessoal. Por um lado, como estava a chegar aos 20 anos, as suas hormonas estavam em pleno reboliço, por outro, havia Scott, a única pessoa a quem o elefante se ligava e que estava instável, constantemente a pedir aumentos de salário. O responsável do jardim Zoológico chegou a enviar uma carta à administração da instituição onde dizia: “Não tenho dúvidas que o estado do animal é tal que mataria qualquer um (menos o Scott) que se atrevesse a entrar na sua jaula. Até agora, Scott conseguiu fazer com que o animal estivesse completamente debaixo do seu controlo. Quanto pode durar esta situação é que é impossível saber.”

Alcoólico, doente e icónico. A verdadeira e incrível história do elefante que inspirou Dumbo

Aqui entra um dos pormenores mais insólitos da história: o truque de Scott para acalmar o elefante era dar-lhe uísque em quantidades tão grandes que ele acabava bêbado, esquecendo-se daquilo que o havia transtornado. Hoje sabe-se que esses acessos de fúria eram causados também pela grande ingestão de bolos que lhe desregulava a dieta e, mais importante, lhe ia destruindo os dentes. Pelo menos essa foi a conclusão do arqueólogo Richard Thomas, da Universidade de Leicester, depois de examinar os restos mortais de Jumbo a propósito de um documentário da BBC com David Attenborough (“Giant Elephant”, 2017). A dor de dentes era tal que o animal enlouquecia de dores.

A juntar a isso Thomas descobriu também graves deformações nas articulações, muito provavelmente causadas pelo contínuo excesso de peso que Jumbo tinha de carregar todos os dias — aos vinte anos, o elefante tinha o esqueleto de um quinquagenário. Por fim, Bartlett decidiu que o risco de ter o animal a magoar algum dos seus visitantes era demasiado grande e decidiu vendê-lo ao magnata circense norte-americano P.T. Barnum, que desembolsou duas mil libras (uma enorme quantia na altura).

A decisão causou tamanha cólera no seio da sociedade londrina que quase se tornou uma ofensa nacional. Todas as noites, milhares de londrinos amontoavam-se para dizer adeus a Jumbo — até chegou a ser criado um fundo comum para recomprar o animal e a própria Rainha Vitória demonstrou o seu desagrado perante a decisão.  Quando finalmente chegou a Nova Iorque, Barnum passeou-o pela Broadway, para que todos pudessem admirar o espetacular animal. Jumbo até chegou a atravessar a ponte de Brooklyn como forma de demonstrar a robustez da construção. Os anos que se seguiram foram talvez os mais felizes da vida de Jumbo, que viajava de cidade em cidade em vez de estar constantemente preso no mesmo sítio.

Jumbo, depois de ser atropelado por um comboio no Canadá.

Comerciante nato, Barnum, que tinha sido um visionário ao fazer fortuna com os chamados “freak shows” das mulheres barbudas e dos irmãos siameses, fez uma enorme campanha de marketing, espalhando vários cartazes por todo os EUA onde se lia “Jumbo, o maior animal do mundo”, algo que só o tornou ainda mais famoso — e rentável. Pensa-se que o animal, nessa altura, era realmente enorme, tendo uma estrutura corporal demasiado grande para a sua idade, somando mais de três metros de altura enquanto os outros elefantes seus companheiros de circo não passavam dos 2,70 metros.

A verdade ou a mentira sobre a morte

Aos 24 anos (a sua espécie pode sobreviver até aos 60 ou 70), porém, deu-se a tragédia. O circo estava a passar pela cidade de Saint Thomas, no Canadá, quando Jumbo se pôs à frente de uma locomotiva para salvar a vida de um elefante bebé que tinha ficado preso nos caminhos de ferro e morreu. Ou então não. No tal documentário de Attenborough é levantada a forte suspeita de que terá sido Barnum a criar essa narrativa do ato heróico: “Fez crer que a sua morte foi um grande ato em que Jumbo se sacrificou para salvar a cria, mas não foi assim.” O que se tenta provar trabalho é que a realidade terá sido bem distinta: enquanto subia para o comboio que os ia transportar, outra locomotiva que vinha no sentido contrário atropelou-o, provocando uma hemorregia interna que o levaria à morte.

Comerciante até ao fim, Barnum fez render Jumbo até mesmo depois da sua morte, vendendo o seu esqueleto. Quando os taxidermistas começaram a  a dissecá-lo aperceberam-se da última surpresa do pobre animal: no seu estômago estavam mais de 300 moedas, “pagamento” de todos os miúdos que passearam às suas costas ainda nos tempos de Londres. A sua morte tornou-o numa super-estrela e, de repente, a palavra “Jumbo” foi assimilada pela língua americana como sinónimo de grande.

A sua passagem à ficção chegou pela mão de Helen Aberson, que escreveu “Dumbo” em 1939. Tudo indica que terá mudado o nome porque “Dumbo” permitia fazer um trocadilho com a palavra inglesa “Dumb”, que significa tolo ou burro. Era um conto de crianças que, ao chegar às mãos de Walt Disney, transformou-se num filme de animação que estreou pela primeira vez em 1941.

O resto é história.