Dias depois de Jair Bolsonaro ter dado autorização ao Ministério da Defesa para comemorar os 55 anos do golpe que deu início à ditadura militar no país, a 31 de março de 1964, Paulo Coelho descreve, num artigo publicado esta sexta-feira no The Washington Post, a tortura a que foi submetido em 1974.

Presidente brasileiro autoriza comemoração do início da ditadura militar

O escritor, autor de best-sellers como “O Alquimista”, era, à época, compositor. E é precisamente assim que arranca o texto escrito na primeira pessoa. Logo no primeiro parágrafo, Paulo Coelho escreve como homens armados invadem o apartamento de um simples “compositor de rock”.

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28 de maio de 1974: um grupo de homens armados invade meu apartamento. Começam a revirar gavetas e armários – não sei o que estão procurando, sou apenas um compositor de rock. Um deles, mais gentil, pede que os acompanhe “apenas para esclarecer algumas coisas”. O vizinho vê tudo aquilo e avisa minha família, que entra em desespero. Todo mundo sabia o que o Brasil vivia naquele momento, mesmo que nada fosse publicado nos jornais.

Depois de ser levado para o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), um tenente deixa-o ir embora. Mais tarde, já dentro de um táxi que o escritor crê estar a caminho da casa dos pais, o veículo é cercado por dois carros. “De dentro de um deles sai um homem com uma arma na mão e me puxa para fora. Caio no chão, sinto o cano da arma na minha nuca. Olho um hotel diante de mim e penso: ‘Não posso morrer tão cedo'”, descreve.

Nos parágrafos seguintes, Paulo Coelho recorda detalhes da tortura a que foi sujeito e de como quem o torturou fazia perguntas que ele não entendia: “Começa o interrogatório com perguntas que não sei responder. Pedem para que delate gente de quem nunca ouvi falar. Dizem que não quero cooperar, jogam água no chão e colocam algo no meus pés, e posso ver por debaixo do capuz que é uma máquina com eletrodos que são fixados nos meus genitais”.

O escritor não sabe precisar quantos dias esteve detido por quem o torturou porque a luz estava sempre ligada na sala à prova de som, onde foi deixado em cativeiro — estava impossibilitado de contar as manhãs e as noites. Anos mais tarde, a irmã contou-lhe que, nesses dias de incerteza, a mãe já não dormia e o pai já não falava.

Já não sou mais interrogado. Prisão solitária. Um belo dia, alguém joga minhas roupas no chão e pede que eu me vista. Me visto e coloco o capuz. Sou levado até um carro e posto na mala. Giram por um tempo que parece infinito, até que param – vou morrer agora? Mandam-me tirar o capuz e sair da mala. Estou em uma praça com crianças, não sei em que parte do Rio.

“Vou para a casa de meus pais. Minha mãe envelheceu, meu pai diz que não devo mais sair na rua”, continua o escritor que, décadas depois, veio a saber que foi torturado por alguém o denunciou. “Quer saber quem o denunciou? Não quero. Não vai mudar o passado.”

O texto, traduzido para inglês pela equipa do jornal The Washington Post, é uma resposta direta à autorização dada pelo presidente do Brasil para celebrar o dia 31 de março de 1964. As comemorações do golpe militar chegaram a ser proibidas por uma providência cautelar, fruto de uma ação popular. Mas, já este sábado, um tribunal superior suspendeu essa providência cautelar, permitindo que o governo brasileiro promova as ações de comemoração que entender.

Decisão de tribunal brasileiro abre caminho a comemoração do golpe militar