Por fora era uma apresentação do novo passe único, que entrou em vigor esta segunda-feira, numa iniciativa do Governo. Mas por dentro teve várias camadas do que se assemelhou muito a campanha eleitoral de cada um dos intervenientes. Embora a intenção tivesse sido desmentida em cada uma das intervenções,  desfilaram não só o primeiro-ministro (e recandidato ao cargo), como ministros e presidentes de Câmara da Área Metropolitana de Lisboa a publicitar os benefícios do novo passe, todos em bicos de pés pela paternidade da medida. Teve de tudo: diretos televisivos à vez dentro do Fertagus, promessas e anúncios de devolução de rendimentos e mais meios de transporte, caminhada a pé pelas ruas de Setúbal com cumprimentos a lojistas e quem passasse — em campanha chama-se arruada, mas aqui sem bombos. Talvez a mais pequena das bonecas desta espécie de matrioska eleitoral fosse a que dá corpo à pré-aguardada luta interna socialista entre Fernando Medina e Pedro Nuno Santos. Mas até essa por lá passou (timidamente).

António Costa levou mais de três horas a fazer um percurso que de automóvel não chega a uma hora, entre Ericeira e Setúbal. Mas apanhou a “camioneta da Mafrense na Ericeira às 7h30, depois o metro no Campo Grande e a seguir o Fertagus para ir até Setúbal”, onde chegou perto das 10h40. Bernardino Soares, presidente da Câmara de Loures, não conseguiu chegar a tempo a Entrecampos, onde Costa apanhou o Fertagus: “Apanhei um acidente da Calçada de Carriche e perdi o comboio por dois minutos. Como não tinha nem burro nem Ferrari…”, gracejou, lembrando aquela campanha de de 1993 em que o candidato António Costa promoveu essa corrida para defender o metro até Odivelas e combater o famoso trânsito na Calçada de Carriche (o burro ganhou) — já há metro, mas o trânsito atrasou na mesma Bernardino, que não foi de Ferrari mas foi de carro e mesmo assim chegou a Setúbal antes de Costa.

Tudo para mostrar os feitos do novo passe único (chama-se Navegante em Lisboa e Andante no Porto), que custa no máximo 40 euros e que Fernando Medina apresentou em setembro, foi aprovado em outubro pelos presidentes das 18 câmaras da Área Metropolitana de Lisboa, lançado numa cerimónia oficial na semana passada e finalmente inaugurado esta quarta-feira, em mais uma cerimónia com pompa e circunstância.

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Eleitoralismo em ano de eleições? “Isso significa que é uma medida boa. Tenho muita pena que alguém que diz que esta medida só chega agora tenha andado distraído em março e tenha votado contra no Orçamento”. Costa referia-se à direita, que esteve contra a medida por não ser igual para todo o país. Sobre este ponto concreto disse ainda “ser um equívoco porque o Governo decidiu desde logo alargar a todo o país — todos os presidentes de comunidades intermunicipais apresentaram um programa de redução de tarifário e/ou de aumento da oferta de transportes”. Onde não entrar em vigor esta segunda-feira, entrará até 15 de abril e, nas restantes, até 1 de maio, assegurou o primeiro-ministro.

Mais 70 mil novos passes pedidos em março deste ano

Foram 15 em 21 Comunidades Intermunicipais do país que aderiram ao novo passe que, em Lisboa por exemplo, fez aumentar a procura por um título de transporte mensal: “Foram mais 70 mil vendidos em março de 2019 do que em março de 2018”, explicou o autarca de Lisboa Fernando Medina. “E muitos a pessoas com mais de 65 anos”, acrescentou.

Mas esta declaração foi na parte dos discursos, antes disso Costa tinha vindo até Setúbal de comboio, sentado do lado direito da carruagem. À direita tinha o ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos e à sua frente o presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina. Um primeiro-ministro e recandidato ao cargo entalado entre o futuro que se antevê para o PS, embora depois, na rua, Pedro Nuno tenha mantido sempre distância da dianteira da comitiva, onde Medina pouco descolou do lado de Costa durante o percurso entre a estação de comboios e a Câmara Municipal. O desfile despertava a atenção de quem passava e até do senhor que do meio da rua exclamou para Costa: “A minha casa é ali, tem de ir lá fazer uma cataplana”.

O primeiro-ministro gargalhou e seguiu até à câmara para a cerimónia oficial de reclamação de paternidade “da criança”, ou seja, do passe único. Começou em Maria das Dores Meira a atribuí-la a Fernando Medina, “que teve visão estratégia para conduzir este processo, de que foi um dos principais artíficies”. Depois veio Medina dizer que “o pai da criança foram estes autarcas e este Governo socialista”. Ainda que tenha concedido que “talvez o parteiro principal seja a equipa de Carlos Humberto, primeiro secretário da Área Metropolitana de Lisboa”. Isto além do agradecimento ao primeiro-ministro e ao ministro do Ambiente, Matos Fernandes, que, segundo Medina, “devia ganhar o título vitalício nesta área da mobilidade” (entre os que estavam na primeira fila só faltou referência ao recém-nomeado ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, o rival interno no PS).

Por fim, veio o primeiro-ministro para dizer que “há muito tempo que não tínhamos uma medida com tantos pais e tantos pais coletivos”, distribuindo os créditos sobretudo pelos “autarcas de todos os partidos, que são coautores desta medida”. Um elogio que lhe servia de ponte para o ataque que interessa nesta atura do campeonato: ao PSD e CDS nacionais, que chumbaram a medida no Parlamento apesar de terem autarcas seus entre os que a apoiaram na Área Metropolitana — aliás, a medida foi aprovada de forma unânime neste órgão. É com eles que se joga a campanha eleitoral de maio, nas europeias, e mais adiante as legislativas, em setembro/outubro.

A medida pesa 104 milhões de euros no Orçamento do Estado para este ano: “Tem tecto fixo em 2019 e se houver aumento da procura isso pode ter impacto na redução de custos”, garantiu António Costa a bordo do Fertagus. Quanto à possibilidade de, nos próximos tempos, os transportes andarem especialmente cheios, o primeiro-ministro admitiu que “haverá certamente um período de ajustamento”, ou seja, apertos nos transportes. Contra isso, Costa apontou os 700 novos autocarros em todo o país e os concurso abertos de navios para equipar a Transtejo.

Pelo meio ainda a intervenção de Matos Fernandes, a falar na importância da redução de carros para o ambiente. Mas a frota automóvel cá fora para levar governantes de volta era a que era (ver a fotografia em baixo). Pedro Nuno Santos foi um dos que voltou de carro — tinha de regressar rapidamente para uma reunião em Lisboa, garantiu. António Costa voltaria mais tarde, de TST, assegurou o seu gabinete. Mas, desta vez, não quis jornalistas com ele.

Carros à espera de responsáveis políticos à porta da Câmara de Setúbal em dia de ode aos transportes públicos

Obra, obra, obra. Promessas mil num ano em que a prática interessa a todos, desde os autarcas aos governantes aos aspirantes, cada um a puxar ao seu partido aquela que o primeiro-ministro aponta como uma medida central na reposição de rendimentos aos portugueses. O Navegante, para quem só circula em Lisboa, passa a custar 30 euros; e, para quem usa todas as outras coroas, 40 euros, sendo o máximo por família dois Navegantes, ou seja, 80 euros. Mas as coroas agora ficam para trás, só ficam mesmo no quadro que Maria das Dores Meira ofereceu a António Costa com réplicas, em seu nome, dos velhinhos L123 e dois passes TST (agora ambos substituídos pelo passe único). “Para trás ficam as corridas do burro e do Ferrari para chegar a Loures”, disse ainda a autarca sobre António Costa, que “mais depressa chegou ao Largo do Rato”. Já Bernardino Soares, sem pretensões algumas de chegar a esse Largo, já se tinha dado por satisfeito em chegar a tempo e horas à saída do comboio de Entrecampos. Talvez de burro.