Uma das coisas que mais falta aos super-heróis, e aos filmes de super-heróis, é sentido de humor. “Shazam!”, de David F. Sandberg, que traz para o cinema o super-herói criado por C.C. Beck e Bill Parker em 1939, e que chegou a ser na altura mais popular do que o Super-Homem, parece feito para compensar essa falha, e seguir o raro exemplo de um Deadpool ou dos Guardiões da Galáxia. Shazam deve o seu nome, e os seus super-poderes, a seis personagens, deuses e heróis mitológicos, e é na realidade (além do Capitão Marvel original, uma história complicada que mete falências de editoras e querelas jurídicas por direitos de autor), um adolescente, Billy Batson, órfão de pai e abandonado pela mãe quando era mais pequeno.

[Veja o “trailer” de “Shazam!”]

A ideia central de ”Shazam!” consiste em ir buscar um velho tema da comédia fantástica, o miúdo e o adulto que trocam de corpos (ver “As Aventuras de Annabel”, com Jodie Foster e Barbara Harris, ou o mais conhecido “Big”, com Tom Hanks – que é aqui citado, aliás), e aplicá-lo a uma fita de super-heróis. Quando Billy (Asher Angel) se transforma em Shazam (Zachary Levi), passa a possuir poderes típicos de super-herói (voa, dispara raios com os dedos, é invulnerável, etc.). Mas continua a ter a mentalidade e o comportamento de um adolescente de 14 anos, uma situação da qual o filme espreme todas as possibilidades cómicas, como pôr Shazam a testar, nem sempre com sucesso, os seus super-poderes numa fábrica abandonada, enquanto Freddy (Jack Dylan Grazer), um dos seus irmãos de família de acolhimento, os filma com o telemóvel e mete os vídeos no YouTube.

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[Veja uma entrevista com os actores de “Shazam!”]

Mesmo o seu uniforme de super-herói, vermelho vivo, com uma capa branca  “kitsch” e um grande relâmpago fluorescente no peito, é motivo de galhofa no filme. Além de apresentar um saudável sentido de humor, “Shazam!” também nunca se leva muito a sério, e remete mesmo, no tom, para os filmes de Super-Homem quando este era interpretado por Christopher Reeve com um toque “screwball” e de auto-ironia, e não se tinha transformado num podão angustiado e presumido. A inocência da personagem, o seu espanto entusiástico ante aquilo que a identidade de super-herói lhe permite fazer, e a falta do bom senso de um adulto, são também devidamente aproveitados para a história. “Shazam!” consegue ser, em simultâneo, uma paródia ao filme de super-heróis e um filme de super-heróis genuíno, tal como o próprio Shazam é, ao mesmo tempo, apatetado e destemido.

[Veja uma entrevista com o realizador e o produtor de “Shazam!”]

O filme começa nos anos 70, com uma sequência enganadora, que parece ir mostrar-nos a génese dos superpoderes do herói, mas que afinal nos revela a origem de toda a bílis, de todo o ressentimento e de todo o ódio que motivam o super-vilão e inimigo de Shazam, o Dr. Thaddeus Sivana (Mark Strong). E apesar de a história transitar depois para os nossos dias, “Shazam!” não deixa nunca de parecer um filme que, efeitos digitais, telemóveis e Net à parte, poderia bem pertencer aos anos 80 e ter sido assinado por um Joe Dante. Reparem só nos sete monstros, correspondentes aos sete pecados mortais, que acompanham o Dr. Thaddeus, e no seu aspeto deliberadamente pouco sofisticado, artesanal, como se tivessem saltado das páginas do “comic” para a tela. Este é um daqueles filmes de super-heróis que mantém a sua personalidade de “comic book” na versão cinematográfica.

[Veja uma sequência do filme]

Sendo uma fita de super-heróis despretensiosa, brincalhona (mesmo na deliciosa ficha técnica final) e sem empáfia de auto-importância nem “mensagem”, “Shazam!” não deixa de ter alguns dos defeitos dos filmes de super-heróis convencionais e mais mastodônticos (nem de fazer a cruzinha num quadrado da agenda ideológica contemporânea: a família de acolhimento etnicamente correta de Billy), que se concentram e tornam mais óbvios no clímax da história, com a inevitável sobrecarga de efeitos especiais e um combate final tão bombástico como repetitivo e visualmente atabalhoado. Mesmo assim, e tudo considerado, “Shazam!” sobressai dentro do género pela leveza, boa disposição, auto-irrisão e desafetação. É o filme de super-heróis mais indicado a quem não tem paciência para filmes de super-heróis.