De Agostinho da Silva, que morreu a 3 de Abril de 1994 aos 88 anos, ficou mais a figura do que o pensamento. As barbas moisaicas, a postura cenobítica, a grave brancura dos poucos cabelos, tudo contribuiu para fazer de Agostinho da Silva a grande descoberta da etnografia filosófica recente. Em Portugal, ou pelo menos por vezes em Portugal, tinha-se descoberto o fóssil vivo de Diógenes ou de Sócrates, o filósofo excêntrico, com a candeia a pender, ora para a genialidade, ora para a loucura, com alma de professor e coração de aprendiz.

Agostinho da Silva ficou como relíquia museológica e como pedagogo; de facto, quer num papel quer no outro, é actor de primeira. Se o aspecto quadra com o de sábio louco, a acção é a de um raro e apaixonado professor. Do ensino popular aos escritos de divulgação, é esta faceta augustiniana que pode ter um efeito mais duradouro na cultura portuguesa. É certo que as biografias de Pasteur ou de Da Vinci não são as mais completas; no entanto, cumprem o objectivo de Agostinho: mais do que um estudo aprofundado, são introduções simples que exortam a um amor pela cultura e pela sabedoria.

Agostinho da Silva mantém sempre a postura, algo ingénua mas ao mesmo tempo simpática, de quem olha para a vida como um acontecimento misterioso que tem tendência a ser abafado pelo conforto. Há sempre, em Agostinho da Silva, aquela paixão pela inquietude, pelo desassossego, que move em direcção a um estado de coisas diferente daquele que temos.

É certo que, no pensamento ocidental, esta inquietude tem sido olhada de uma maneira um pouco diferente. Para Santo Agostinho, como para Platão ou para Kierkegaard, a inquietude não é uma aspiração, é uma evidência. Ou seja, o conforto do Homem não é um conforto verdadeiro, é a expressão de um coração inquieto que saltita de prazer em prazer sem que nada lhe traga verdadeira satisfação. O papel da filosofia está em dar a ver esta inquietação, para que o Homem se volte para aquilo que verdadeiramente acalma o desejo.

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Para Agostinho da Silva, este desassossego parece mais um fim do que uma verdade sobre o Homem. Agostinho da Silva parece gostar daquilo que a filosofia antiga procurava fugir: gosta da inquietude, do sobressalto, da inconstância e isto faz dele um pensador que está constantemente a entrar nas categorias da filosofia, mas que as usa com um propósito diferente.

O caso da inquietação não é caso único: mesmo a sua interpretação de Portugal é feita deste modo. Para Agostinho da Silva, a grandeza de Portugal está na sua diluição. O Império português não é um Império de facção, é um império com o espírito universal da Igreja católica, um espírito de que, segundo Agostinho, a própria Igreja se esqueceu e o substituiu por um corpo doutrinário estanque. A ideia de Portugal, para Agostinho da Silva, é a ideia de heterodoxia, da harmonização de todo o mundo, de, como ele explica no seu Um Fernando Pessoa, um Império que não se preocupa com formas de governo ou com religiões, existindo por si e não por aquilo que o compõe. Mais uma vez, manifesta-se nele o espírito de pedagogo, o espírito que procura ensinar com a mesma nobreza todos os assuntos e os seus contrários, que procura a síntese e que salta sem pestanejar por cima de barricadas aparentemente intransponíveis.

Ora, o problema desta forma de pensar é que, na sua tentativa de harmonizar tudo, pode acabar por excluir também tudo. Veja-se o caso da religião: por muito que um pensador advogue que, mais do que uma ou outra religião, interessa o sentimento religioso e que, por isso, todas têm a sua verdade, a ideia, numa religião, da sua exclusividade é incompatível com a harmonia. Se, para um Cristão, Deus se revelou na doutrina da Igreja, não há igualdade entre esta doutrina e a doutrina do Islão. O espírito de heterodoxia ou a tentativa de eliminar o princípio de contradição podem ser elementos importantes para criar uma consciência crítica; mas, mais uma vez, não podem ser um fim. Um espírito verdadeiramente heterodoxo nunca se reconhece como tal porque, obviamente, acha que os seus pensamentos estão certos, são ortodoxos. Só é permanentemente heterodoxo quem não tem ideias e, por isso, pode professar todas à vez, sem realmente acreditar em nenhuma.

Para um professor, esta até pode ser uma qualidade, e uma das qualidades que mais engrandeceu a figura de Agostinho da Silva; mas para um homem, a heterodoxia nunca pode ser mais do que uma recordação, simpática ou não, dos tempos de uma infância filosófica.