Kyle Guy tem tatuagens nas duas coxas. Na da perna esquerda, decidiu tatuar o provérbio swahili sisi ni sawa, “somos iguais”, em homenagem ao filme Rei Leão, onde a personagem Rafiki utiliza várias vezes o dialeto africano. Na da perna direita, exibe um enorme desenho de um leão com David e Golias dentro da boca, em alusão à história bíblica. “Digo sempre que a motivação é a curto prazo, a inspiração é a longo prazo”, explicou o norte-americano há alguns meses, quando tatuou a representação do rapaz franzino que venceu um gigante.

A inspiração, como lhe chama Kyle, foi nos últimos meses o local onde o jovem atleta foi buscar a motivação que escasseava. Esta terça-feira, num jogo que serviu também enquanto espanta espíritos, Kyle Guy venceu com os Virginia Cavaliers o National Collegiate Athletic Association (NCAA), o campeonato de basquetebol universitário dos Estados Unidos. O shooting guard de 21 anos foi considerado o melhor jogador do torneio e o MVP da final disputada com os Texas Tech (85-77), tendo terminado o encontro derradeiro com 24 pontos, três ressaltos e enquanto elemento mais utilizado da equipa da costa leste norte-americana. Mas o primeiro título da história dos Virginia Cavaliers começou a ser conquistado há mais de um ano: quando a equipa perdeu de forma escandalosa na primeira ronda do torneio.

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Na altura, tal como agora, os Cavaliers ocupavam o primeiro lugar do ranking das equipas de basquetebol universitário. Dessa forma, e de modo algo inevitável, eram um dos principais candidatos à vitória e tinham em Kyle Guy a grande mais valia do plantel. A surpresa surgiu logo na primeira ronda: os Virginia Cavaliers perderam com os UMBC Retrievers, uma equipa teoricamente muito inferior. A dureza não só da eliminação como do resultado (o conjunto de Maryland venceu por 20 pontos de diferença) apanhou de surpresa uma equipa naturalmente habituada a ganhar e que já tinha o foco apontado à conquista do título. Afinal, era a primeira vez na história que o primeiro classificado do ranking perdia na primeira ronda — e a insatisfação dos adeptos, aliada a inúmeras ameaças de morte recebidas pelos jogadores nas horas após a derrota, obrigou à presença de uma escolta policial quando a equipa regressou a casa.

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39 dias depois da eliminação, Kyle Guy decidiu partilhar nas redes sociais como tinha sido aquele mês que se seguiu à inesperada derrota. O atleta transcreveu uma carta que escreveu para ele mesmo e detalhou a luta contra a ansiedade, contra os problemas de saúde mental e contra a crescente dependência de fármacos. No extenso texto, Kyle afastou os fantasmas que acumulou durante seis semanas. “Passaram seis semanas. E vou direto ao assunto. Nunca me senti melhor. Mas isso não significa que me tenha sentido assim desde que aquilo que todos sabemos aconteceu; só significa que estou bem agora. Todos passamos por adversidades mas nem todos vivemos lá. Não quero que esta carta seja uma lamentação, um sermão, um discurso ou até uma história para as pessoas se sentirem bem. Quero que seja real. Quero que isto tenha impacto nas pessoas e quero que toda a gente entenda aquilo por que eu e a minha equipa passámos. Esta é a minha história”, começou por dizer o jovem atleta.

“Quanto soou o apito final, eu colapsei. Colapsei e a pressão chegou até mim. Se me conhecem, sabem que eu não acredito na pressão: acho que só é real se a deixarmos ser real. A pressão surge do ato de pensar demasiado sobre o futuro ou o passado, por isso, a pressão não existe se estivermos onde os nossos pés estão. Bem, eu estava exatamente onde os meus pés estavam mas a minha mente correu para o passado, para o futuro, para o presente. Era demasiado (…) tive uma imediata sensação de tristeza, ansiedade e falhanço. Estava a chorar incontrolavelmente. O sentimento de vergonha é difícil de afastar. Foi ainda mais difícil engolir a vergonha e subir ao pódio. A minha garganta estava seca e dorida de aguentar as lágrimas. Tinha de estar constantemente a beber água para me esquecer de chorar”, contou Kyle Guy, que depois do testemunho sincero e detalhado sobre tudo aquilo que sentiu após a derrota revelou que teve de ser medicado para lidar com a ansiedade e a depressão e acabou por descobrir, em conjunto com o terapeuta, que a melhor maneira de exprimir o que lhe passava pela cabeça era escrever.

Mais de um ano depois de ser o Golias que perdeu com David, Kyle Guy tornou-se o David que derrotou o Golias formado pela ansiedade, pela depressão, pela vergonha e pelo receio. Há algumas semanas, por altura do início da fase final do campeonato, revelou que tinha colocado uma fotografia da derrota do ano passado no fundo do ambiente de trabalho do computador para se recordar todos os dias daquilo que não poderia voltar a acontecer. Agora, Kyle já pode mudar a fotografia.