Puxe uma cadeira antes de começar a ler — com sorte, poderá ser da Emeco, a marca que em 1944 já produzia assentos para os navios e “sem crises de meia idade”, como anuncia no seu site, continua a reaproveitar materiais para as novas criações. Foram as eleitas para ocupar os lugares no ReTaste, o restaurante em formato pop up que funcionou em Estocolmo no verão passado, para contrariar os números: cerca de 1/3 dos alimentos produzidos para consumo humano a nível mundial são desperdiçados (e onde todos os acessórios, dos copos à cerâmica, davam nova vida a velhas matérias-primas).

Um projeto da inglesa Ruth Osborne, que se aliou aos chefs Paul Svensson (nomeado um dos 50 chefs do Plant-Forward Global) e Christofer Ekman para recolher alimentos descartados por supermercados e transformá-los em refeições deliciosas que mudavam todas as semanas, consoante a recolha. Pelo caminho, o processo envolveu generosas doses de originalidade e o recurso a técnicas variadas para prolongar as condições dos ingredientes, com a desidratação, fermentação ou moagem em cima da mesa — e mesmo quando estes paliativos da alimentação falhavam, seguiam para a compostagem ou até para a produção de biogás que alimenta a rede de transportes urbanos.

De passagem por Lisboa, para participar na quarta edição da Conferência Portugal Saudável, onde esta quarta-feira, no Capitólio, apresentou o projeto e abordou o papel dos chefs na criação de práticas culinárias sustentáveis e conscientes, a co-fundadora da consultora Retired Hen partilhou novidades, desafios, e recordou a experiência que conquistou até a princesa Vitória da Suécia.

Diz que há cerca de oito anos, quando começou a pensar no tema, os supermercados estavam muito reticentes à participação nesta cadeia de reutilização de alimentos descartados. Muito mudou entretanto?
Sim, muito mudou globalmente, pelo menos pela minha experiência em Londres e na Suécia houve uma mudança brutal. Deixámos de ter vergonha na comida que resulta do desperdício para a vermos como uma oportunidade de promover os nossos valores sociais. As pessoas não queriam ver o problema e hoje abraçam-no, pensando que podem de facto ajudar a resolvê-lo. Já basta a quantidade de coisas no mundo que não podemos mudar. Quanto à comida, podemos fazer a diferença, e isso pode ser divertido e saboroso. Mesmo economicamente é uma decisão sensata, para não falar ambientalmente. Sentimo-nos bem e é um desafio interessante.

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Não é de facto um daqueles casos em que é mais fácil falar que fazer?
É fácil mudar desde que tenhamos essa confiança. É muito importante a parte da promoção também, de ouvir histórias de mudança, como o que venho aqui falar. Isso também contribui para a mudança, saber que outros estão a contribuir para a mudança. Na verdade podemos fazer isto em nossa casa, no supermercado, no restaurante. Há muitas maneiras de atacar um problema.

Como começou o projeto ReTaste?
Tirei um master em ajuda internacional e desenvolvimento e fiz voluntariado. Estive no Quénia, Guiné, sempre focada em aspetos de nutrição, talvez muito devido ao meu background nessa área. Desde miúda que adoro comer, e trabalho em restaurantes desde os 18 anos. Já estava nesta área a aplicar o trabalho de campo, a tentar que os chefs falassem mais sobre o que andavam a fazer, quando conheci o chef Dan Barner, do Blue Hill em Manhattan e Blue Hill em Stone Barns, e ele é um dos mais inspiradores. Parece um chef filósofo, cheio de ideias. Fechou o seu restaurante e durante três semanas só usou desperdícios. Foi um sucesso. Trouxe o conceito para Londres, onde o ajudei a lançar o projeto e para mim foi a peça final do puzzle. Estava por fim a fazer o que gostava com as pessoas de quem gostava e a fazer algum bem social. Parte do meu trabalho era gerir a agenda de chefs convidados todas as semanas, cada um deles com diferentes pratos e ingredientes. Um deles, o Paul Stevensson, desafiou-me para ir fazer isto para Suécia. Pensei ‘ok, abraçar a mudança é bom’. Penso que isto me deu uma força diferente da que teria se o fizesse sozinha.

Quando lançaram mesmo o conceito em Estocolmo?
No verão passado, entre maio e setembro. Os suecos adoram um longo verão.

Qual o balanço? Pretendem dar seguimento à ideia?
Vamos lançar um novo espaço em  Sundbyberg, a sete minutos de comboio do centro de Estocolmo, com muitos negócios em redor, uma zona menos hipster. Estamos a construir um café que funcionará das dez às seis e terá também uma mercearia com produto zero desperdício e comida para take away. Também teremos o serviço de café e em algumas noites serviremos jantares. Muita da experiência virá do modelo ReTaste. Teremos um espaço superior também para cultivar, queremos apostar na economia local.

Com preços acessíveis?
Sim, muito acessíveis, e muito saudável.

Como se combina a aspiração premium dos chefs com o que está a expirar nas prateleiras do supermercado e com produtos menos frescos e vistosos do que o esperado? Foi mais desafiante que a eventual burocracia associada?
A burocracia em Estocolmo também existe, eles adoram uma boa regra. Mas, psicologicamente, o ReTaste foi um desafio maior para os chefs que para os consumidores. Porque estes até podem ter algumas reservas mas acabam  por experimentar e ver que sabe bem. Um chef, sobretudo se estiver habituado ao fine dining, quer o melhor do melhor e nada mais entra na sua cozinha. De repente estás a lidar com tomate já no limite e nada se parece com aquilo que idealizas. Tens que mudar totalmente a abordagem. Foi incrível assistir à sua criatividade. O bom do movimento ReTaste é que pôs as pessoas a olhar para as oportunidade e menos para as dificuldades.

Paul Svensson, um dos chefs envolvidos no projeto ReTaste, do restaurante Pauls Kok © Paulskok

Para o consumidor em geral foi mais fácil?
Foi menos desafiante. Muita gente não esperava que o resultado pudesse ser tão bom. O grande desafio era manter um sabor e qualidade premium. Porque ninguém está disposto a pagar o mesmo se o resultado for mau, sobretudo quando se pensa em produtos que seriam descartados. Os chefs sabiam que conseguiriam superar o desafio mas teriam de pensar de maneira diferente.

Qual a maior dificuldade em todo o movimento?
Não sou chef logo não posso falar por eles, mas um grande desafio foi conjugar o que os fornecedores tinham com o nosso menu a criar. Com a ReTaste nunca sabíamos se íamos receber um monte de ananás ou folhas de alface. Por vezes tínhamos coisas incríveis, outras vezes só recebíamos um pão escuro e uma embalagem de Nutella. Um dia tínhamos 64 convidados e nada para cozinhar. Esta falta de consistência foi talvez a maior dificuldade, e aquele que seria o maior problema a longo prazo. Mas foi também muito divertido (risos).

Com tanto desperdício no geral é difícil imaginar uma carência de matéria prima. 
Sim, com full waste há zero waste para nós.

Imaginamos sempre, pelo menos no chamado primeiro mundo, que falamos de um volume considerável. Ainda assim, foi uma surpresa para si a quantidade de alimentos que todos os dias vão parar ao lixo?
É de loucos. Sabíamos que haveria imenso pão todos os dias — há um enorme desperdício de pão na Suécia — portanto focámo-nos muito nisso. Mas a parte incrível é que não havia fronteiras, a única fronteira era o desperdício de comida. Não vens para comer um prato italiano, ou sueco, vens para comer um prato feito de desperdício.

Um princípio de menu bem global.
Totalmente. Um dia tanto servíamos um prato de chili, como a seguir servíamos um prato de pasta. Foi divertida a forma como estruturavam o menu.

Qual é a relação do país com os chamados restos, por exemplo? A lógica de reaproveitamento por aqui não é propriamente estranha.
Penso que o sul da Europa tem uma tradição incrível de usar tudo o que há no frigorífico. Nunca há tomate que se perde em Itália. Na Suécia há um cultura ótima de fermentação e de cura de peixe, com uma tradição culinária também incrível, mas não tão forte nesse aspeto. Como nativa de Londres, posso dizer que a experiência inglesa é péssima. Os britânicos não são nada bons a reaproveitar. Ninguém aprende a cozinhar nas escolas, mas é preciso mudar a forma de comprar, de fazer, de pensar todo o sistema de consumo.

O aspeto do espaço pop up ReTaste, onde o desperdício zero ia além do prato. As cadeiras usadas, por exemplo, eram da Emeco, habituada a reaproveitar material desde 1944 © Emeco

Acredita que este esforço possa ir além de um certo hype e mediatismo que rapidamente se enterra?
Potencialmente. A verdade é que as mudanças climáticas não vão desaparecer, os problemas estão aí. Se cada um de nós fizesse o que está ao seu alcance haveria uma mudança global. É isso que este movimento no fundo quer inspirar. Queremos que o espírito ReTaste se prolongue, que não seja uma simples tendência, com altos e baixos como todas as tendências.

Falamos de países ditos desenvolvidos, apesar de algumas assimetrias. E quando pensamos em desafios ao nível de países onde a fome se sobrepõe a qualquer desperdício? O modelo ReTaste pode ter alguma utilidade?
É um desafio totalmente diferente. A maior parte do desperdício nos países de primeiro mundo existe ao nível do consumo. Está no supermercado, nos grossistas, na minha cozinha. Quando olhamos para o terceiro mundo, esse problema está ao nível da distribuição. Depende de água, de solos, de transporte adequado. Quando esses obstáculos estão  ultrapassados, não há desperdício dentro de casa daquelas famílias. Porque valorizam o processo, sabem o que o custa. É um modelo totalmente diferente. A ReTaste não consegue fazer nada em casos destes, mas é interessante como podemos ajudar comunidades em diferentes partes do mundo. O desafio em Estocolmo é diferente do de Londres, e mesmo dentro de Londres, há diferenças entre o leste e a parte ocidental da cidade. A comida é de facto um assunto sério nas nossas vidas e claro que o dinheiro que temos no banco determina todo o processo. Este é um problema global mas não há uma solução global.

Mas não poderíamos fazer mais para ajudar a resolver o problema? Com o modelo ReTaste também estamos a falar de canais de distribuição, e de melhorar estas ligações.
Penso que sim. A logística e a distribuição são aspetos muito interessantes em todos os ângulos, seja em Estocolmo ou na Etiópia. Ser capaz de desenvolver soluções, de mobilizar para soluções e mudanças sustentáveis, estudar processos e métodos de refrigeração que podem ter grande impacto em todo o mundo, desenvolver a imunização, tentar prolongar a frescura dos alimentos. É aí que penso que a tecnologia alimentar pode de facto ser relevante, mais do que perdermos tempo com robots de cozinha. Claro que isso é interessante, mas a food tech pode de facto ajudar a resolver problemas graves em países subdesenvolvidos. Por vezes somos apenas preguiçosos.

Em que mais andamos a usar mal o nosso tempo quando falamos desta área e do seu potencial?
Passamos muito tempo no Facebook e a no Instagram a escolher filtros para parecermos melhor. A tirar fotos da nossa comida, sem pensar muito… Percebo isso mas muita gente não quer confrontar-se com as mudanças que realmente atravessamos e enfrentamos é por isso que experiências como a ReTaste têm que ser divertidas para chamar a atenção, reutilizando produtos de supermercado de uma forma em que as pessoas nem têm que pensar nisso porque simplesmente sabe bem. Tornar as coisas mais fáceis sobre sustentabilidade é de facto importante. Criemos apps a explicar o conceito, aumentemos a participação. É inevitável: a vida hoje é sobre conveniência, ninguém quer algo que seja difícil. O objetivo é tornar a decisão a favor do ambiente um passo conveniente para cada indivíduo. Se o conseguirmos será muito mais fácil, mas claro que não é simples.

Muito menos numa era foodie?
Pois, a veneração dos chefs…Digo muitas vezes, com todo o amor que tenho por eles, que são uma fonte de inspiração incrível e que hoje têm o poder de mudar o mundo porque as pessoas os ouvem. São uma voz muito poderosa e com a ação correta têm a receita certa para mudar o mundo.

São poderosos gurus dos nossos dias?
Absolutamente. O respeito e adoração que granjearam do público é brutal. Claro que ainda há um fosso entre géneros, mesmo numa sociedade paritária como a Suécia. A gestão da casa e da cozinha continua a estar entregue às mulheres. Precisamos de novos modelos e fontes de inspiração.

Algum comentário que recorde particularmente da vossa experiência no terreno?  Até a princesa Vitória vos visitou.
É verdade. Ela adorou! Foi incrível ter lá a família real sueca. O feedback em geral: “não consigo acreditar que isto ia tudo para o lixo”. É muito chocante. Tudo o que usávamos estaria mesmo destinado ao lixo se não fosse usado. Basta pensar que se um ovo estiver partido numa caixa de dúzia eles são todos descartados. Ou seja, podíamos usar 11! É ridículo que não os usemos. Mal dá para acreditar. Se pusermos isto numa escala global é fazer as contas.

Já mencionou o poder do discurso. Que mensagem mais costuma frisar nas suas intervenções?
Em Lisboa vou falar do que podemos realmente fazer numa perspetiva prática, para lá de políticas alimentares. Vou falar da relação com a Coop (retalhista), do modelo de restaurante local, e ainda do tal storytelling, de como puxar pela imaginação do público é vital para promover a mudança. Dizer às pessoas o que devem fazer é algo que envelhece muito rapidamente. É por isso que se tivermos miúdos a dizer que querem fazer isto ou aquilo é mais fácil. A educação nestas faixas é mais eficaz. São eles a chave do sucesso a longo prazo. Diria que um bom negócio, chefs inspiracionais a uma boa narrativa são os ingredientes certos para estimular as pessoas.

“Feed people not bins” ou um exemplo de uma iguaria com o selo ReTaste, feita para alimentar pessoas e sobreviver ao caixote do lixo © karinbohlinsthlm

De que estaremos a falar daqui a dez anos?
O clima será cada vez mais relevante quando falamos de sistemas de consumo, a falta de água, o problema da migração, a falta de solos. Será uma crise global muito mais forte do que discutir embalagens de plástico. Haverá millhões para alimentar com uma população que não pára de crescer. Infelizmente penso que o cenário piorará ainda mais antes de começar tudo a melhorar. Mas felizmente espero que teremos jovens promotores de uma mudança, que hoje têm ferramentas que eu não tinha aos vinte anos.

Que erros cometia com essa idade?
O meu guilty pleasure era comprar abacates (risos). Devolvia-me a casa. Comia muita carne, algo que cortei. Sempre tive alguma consciência e sei que apoiei negócios que não se portavam bem do ponto de vista da ética alimentar. Nem sempre tive uma voz ou a confiança para ter essa voz. Mas com a idade dizemos mais o que pensamos.

É difícil avaliar quem apoiamos e destrinçar essa eventual cumplicidade?
Eles não querem que se saiba, pelo que torna tudo mais difícil. Ninguém vai divulgar que anda a usar químicos. Tentamos travar o mais que podemos. Aquela sexta-feira em que os miúdos faltaram todos às aulas para protestar a favor do planeta? Foi incrível. Mais tarde ou mais cedo, terão que lhes dar ouvidos porque daqui a dez anos aqueles miúdos vão estar a votar. Impõem uma mudança que a minha geração já não consegue impor.

Falou da relação forte e antiga com a comida. Que memórias guarda daqueles tempos em que os pais nos dizem para não deixar comida no prato?
Nem precisavam de dizer isso porque eu e o meu irmão lutávamos pelo último bocado! Tínhamos dois primos que demoravam a comer do outro lado da mesa e a minha mãe perguntava-me porque é que nós não aprendíamos a saborear melhor a comida (risos). A minha mãe é médica portanto sempre preferiu vegetais a comida processada. Quando era pequena lembro-me de estarmos todos em redor da mesa, sem televisão. Para mim, essa ligação forte com a família é uma grande explicação para a minha paixão pela comida.