É aquele momento do ano em que Bloco de Esquerda, PCP, Verdes, PSD e CDS vestem a pele de partidos da oposição — mesmo os que votam a favor dos orçamentos e documentos do governo — e, cada um com a sua narrativa, criticam o governo socialista. Foi o último debate da legislatura sobre o Programa de Estabilidade, o documento com as metas e a estratégia económica para os próximos quatro anos que o Governo tem de enviar a Bruxelas até ao fim do mês. Tal como aconteceu nos últimos quatro anos,  teve duas versões da mesma história e teve — esta sim foi a novidade — um cheiro de campanha eleitoral: o que quer que o governo aprove para 2019-2023 não terá validade, porque em outubro o governo já é outro. Em suma, um debate do “absurdo”, apelidou o Bloco de Esquerda.

“O governo apresenta aqui hoje um Programa de Estabilidade para enviar para Bruxelas nas vésperas de umas eleições europeias que irão mudar a composição do Parlamento Europeu e a Comissão Europeia, e nas vésperas de umas legislativas que irão mudar o parlamento português e o governo português, e isto é o absurdo que decorre das absurdas leis europeias”, afirmou o líder parlamentar bloquista Pedro Filipe Soares, lembrando que em 2015 também o governo de então, do PSD/CDS, apresentou um Programa de Estabilidade que acabou por ser “rasgado” pela maioria de esquerda no rescaldo das legislativas daquele ano. “Serve apenas para cumprimento de calendário, não serve para grande coisa, porque o povo é que vai decidir o que quer para o seu futuro”, insistiu.

Nisto, o deputado do PSD António Leitão Amaro, concordou: trata-se de um programa que “não é para cumprir”. “Este Programa de Estabilidade vai ser chumbado pelos portugueses em outubro“, disse, acrescentando que, tratando-se do último Programa de Estabilidade da legislatura, ou seja, do último de quatro anos em que o Parlamento o discutiu, não é mais do que um programa “para lamentar”. “Para lamentar o abrandamento do investimento que os próprios previram”, “para lamentar que a produtividade tenha sido sempre a cair” e “para lamentar que, depois de tanto esforço para libertar os portugueses da bancarrota, o governo tenha aumentado impostos indiretos e aumentado a carga fiscal”.

Mas, como as europeias até vêm primeiro do que as legislativas, PSD e CDS dedicariam grande parte do seu tempo a atacar o candidato do PS, que é também o ex-ministro responsável pela pasta do investimento e da execução dos fundos comunitários. “Pedro Marques, com a sua incompetência, foi o melhor aliado do ministro Mário Centeno porque o investimento público é sempre menor do que aquele que está previsto”, disse o social-democrata António Leitão Amaro. Também o centrista Pedro Mota Soares, que se candidata a um lugar no Parlamento Europeu, apontou baterias ao ex e ao atual ministro do Planeamento (Nelson de Souza tinha feito a primeira intervenção em nome do governo) criticando a redução do investimento público prevista já para este ano de cerca de 500 milhões de euros, e afirmando que Pedro Marques e Nelson de Souza são responsáveis pela “pior execução de sempre dos quadros comunitários” e pelo “desaproveitamento dos dinheiros de Bruxelas”.

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Com o CDS a criticar o “poucochinho socialista”, e o PSD a falar num programa nacional sem reformas, a deputada social-democrata Maria Luís Albuquerque (que há cinco anos estava no outro lado da bancada a apresentar o Programa de Estabilidade do anterior governo) ainda falou num “filme socialista que já sabemos como acaba” — o original acabou no “pântano”, a sequela acabou na “bancarrota” e “ninguém quer saber” como acaba o volume III.

BE duro com Centeno: “Mais alemão do que o ministro alemão”

Embora esquerda e direita se tenham pegado em toda a linha, com BE e PCP a recordarem os tempos idos de 2015, em que o governo de direita queria “cortar 600 milhões nas pensões”, e com PSD e CDS a acusarem os partidos da esquerda de “às segundas, terças e quartas gritarem contra o governo, e às quintas e sextas aprovarem os orçamentos do governo”. De facto, hoje é quarta-feira e não foi raro ouvir bloquistas e comunistas (sobretudo bloquistas) gritar contra Mário Centeno.

Duarte Alves, do PCP, começou por apresentar o projeto de resolução do PCP, onde o partido rejeita aquilo que diz serem as imposições de Bruxelas, por considerar que as regras do Programa de Estabilidade impedem a independência do país, e onde põe PS, PSD e CDS no mesmo saco — mas foi pela voz dos bloquistas Pedro Filipe Soares e Mariana Mortágua que mais se ouviram ataques ao governo.

Referindo-se ao ano de 2018, que terminou com uma folga de 1100 milhões de euros que não foi usada, Mariana Mortágua perguntou: “Quanto é que estava previsto para o Novo Banco em 2019, quanto vai ao défice e como vai ser acomodada?”. Também Pedro Filipe Soares tinha acusado Mário Centeno de “colocar os bancos à frente das pessoas”: “Há uma cedência do PS ao velho PS, ao PS que ignora que foi o aumento do salário mínimo nacional que retirou pessoas da pobreza, que desiste do caminho que fizemos durante quatro anos”. Para Pedro Filipe Soares, o investimento público levou “uma razia” neste Programa de Estabilidade, mostrando que Centeno é “ainda mais alemão do que o ministro das Finanças alemão”. e a dí

Governo vê outro filme. Dívida pública a descer “já amanhã”, investimento a aumentar e o Diabo que não veio

O filme que o Governo vê, no entanto, é outro. Em resposta a Mariana Mortágua, Mário Centeno admitiu que o Governo “não gastou o que não tinha” e fez “uma gestão cautelosa, talvez conservadora”, das contas, referindo-se à execução da despesa corrente. E, num recado para os parceiros de esquerda, Mário Centeno destacou o rigor das contas públicas e disse que estavam enganados os que achavam que o défice não devia diminuir: “Apenas com rigor garantimos o desenvolvimento do país, quem entender de outra forma estará a enganar-se a si próprio e a hipotecar o futuro das gerações vindouras”, disse.

Segundo o ministro das Finanças, o Programa de Estabilidade prevê mais 1000 milhões de euros de impostos que são alocados ao investimento público. E, segundo o ministro do Planeamento, o investimento público cresceu 11% em 2018 — “não cresceu tanto como desejaríamos mas no quadro do Portugal 2020 o investimento público co-financiado cresceu 70%” –, e os fundos comunitários do Portugal 2020 estão a ser alocados à “abertura de concursos”, como nos metros de Lisboa e Porto, na linha de Cascais, no sistema de mobilidade do Mondego, ou no “apoio a projetos inovadores”.

Resumindo, se as previsões inscritas no Programa de Estabilidade de 2015 – o último do anterior Governo – era uma espécie de “que se lixem as eleições e que se lixem os desempregados”, disse Mário Centeno, agora é olhar para os números da taxa de desemprego e comparar. “Quem queria levar Portugal para os infernos pode ver que nada disso aconteceu”. E mais: “Já amanhã a dívida pública vai começar a descer em termos nominais”, atirou o ministro. Só que, confirmou depois fonte do gabinete ao Eco, o “já amanhã” era meramente figurativo. Como quem diz, um dia destes.

Os projetos de resolução do PCP, PSD e CDS que rejeitam o Programa de Estabilidade do Governo só vão ser votados esta sexta-feira mas, apesar de todos terem dado um cartão vermelho ao Governo, nenhum projeto vai ter luz verde.