Há os filmes de animação exclusivamente para miúdos; há os filmes de animação que podem ser vistos pelos miúdos e pelos adultos (que são a grande maioria, quase todos seguindo a matriz estética e narrativa em digital e 3D da Pixar e da Disney); e há, de vez em quando, os filmes de animação reservados aos adultos. “Ruben Brandt, Coleccionador”, realizado na Hungria pelo esloveno Milorad Krstic, é um destes, recorrendo a técnicas modernas de animação para desenvolver um enredo envolvendo história da arte, cinefilia, psicanálise e uns pózinhos de política do tempo da Guerra Fria. Tudo isto sem abusar da ironia pós-contemporânea ou da presunção culturalista, e apresentado num formato de paródia à comédia policial e de perseguição hollywoodesca. Van Gogh e Freud encontram “Missão: Impossível” e “Velocidade Furiosa”.

[Veja o “trailer” de “Ruben Brandt, Coleccionador”]

Ruben Brandt é um psiquiatra atormentado por sonhos recorrentes em que é ferozmente atacado por figuras de 13 grandes quadros do cânone da arte ocidental, e que o tentam devorar, mutilar, afogar ou encher de balázios, desde infantas de Velázquez até à Vénus de Botticelli, passando por personagens de Edward Hopper pupelo Elvis Presley de Andy Warhol. Intrigados, quatro dos seus pacientes, que o estimam particularmente, incluindo uma bela cleptomaníaca e ladra de alto coturno chamada Mimi, resolvem ajudá-lo. Mas para isso, é preciso que roubem os 13 ditos quadros, que estão expostos em museus como o Louvre, a Tate ou o MoMA. Ou melhor será dizer, nos seus equivalentes do bizarro universo em que “Ruben Brandt, Coleccionador” se passa.

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[Veja um excerto da conferência de imprensa do realizador no Festival de Locarno]

Milorad Krstic situa o filme num mundo muito semelhante ao nosso, só que parte realista, parte cubista, parte onírico, em que as pessoas são elegante ou grosseiramente estilizadas, e tanto podem ser iguais a nós como ter duas caras, ou duas bocas, ou quatro seios, e onde o realizador se farta de brincar com as perspetivas, as formas e os contornos do mundo físico. O que vai por sua vez relacionar-se com a explicação profunda dos pesadelos “artísticos” que dão cabo das noites de sono de Ruben Brandt. O filme tem ainda um detetive, Mike Kowalski, que começa por perseguir Mimi, e a seguir, o quarteto de ladrões de quadros no qual ela se inclui, e que funciona como o representante do espectador no enredo, cujas pistas vai decifrando para nós à medida que ele se desenrola.

[Veja uma cena do filme]

“Ruben Brant, Coleccionador”, desdobra-se, com bastante sentido de humor, em citações, piscadelas de olho e cotoveladas não só à pintura e à escultura (e quase todas elas muito bem desarrincadas), como também ao cinema, que aliás faz parte integrante da resolução do mistério dos sonhos que estão a deixar Ruben Brandt maluco (ver as experiências conduzidas pelo pai durante a sua infância). É essa superabundância de alusões, essa acumulação incessante de referências, que acabam por pesar demais sobre o filme, que tem também história a menos para a hora e meia canónica que dura. A prolixidade e a falta de capacidade de síntese não são problemas exclusivos das fitas de imagem real.

Estas insuficiências não tiram o mérito a Milorad Krstic. Ele conseguiu, com “Ruben Brandt, Coleccionador”, fazer um filme de animação a contrapelo dos modelos contemplados pelo “mainstream” do género, servindo-se para isso, com inteligência, criatividade e humor, da grande tradição artística ocidental.