A madeira azul enquadra-nos no mar. São barras basculantes que sobem e descem, como a maré, e que são ocupadas por três animais instrumentistas (o peixe é o clarinete, o caranguejo é o saxofone, o polvo é o fagote), uma espécie de guardadores e amigos de uma menina que habita aquelas águas desde sempre, que é bailarina ao serviço de uma raia que manda em todos os mares. Do lado de cá, ou seja, na terra, há um menino que se cruza com este cenário e que fica intrigado por tal visão, por tal vida. Sim, é isso, acertou, estimado leitor, estamos n’A Menina do Mar, um dos mais significativos contos de Sophia de Mello Breyner Andresen, que é agora levado a palco por Ricardo Neves-Neves, Martim Sousa Tavares (neto da autora e maestro) e o compositor Edward Luiz Ayres d’Abreu até dia 12 de Maio no LU.CA – Teatro Luís de Camões, em Lisboa. E é mais um capítulo da programação das Comemorações do Centenário de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2019).

Comemorações essas que se espalham por Lisboa e pelo Porto e que já geraram várias iniciativas pontuais como exposições e concertos, às quais se junta esta e às quais se vão juntar, também, dois dias de colóquio sobre Sophia na Fundação Calouste Gulbenkian, ou ainda um concerto comemorativo no exato dia em que faria 100 anos, a 6 de Novembro, no Teatro Nacional São Carlos e ainda um ciclo de conferências intitulado Sophia e as Artes, em Novembro e Dezembro na Fundação Serralves e na Biblioteca Almeida Garrett, entre outras coisas.

Fotos de Alípio Padilha

Tudo inserido numa programação que quer voltar a pensar a obra de um dos mais importantes nomes da literatura nacional, e sim, é sobretudo isso, sentarmo-nos de novo e ver o que isto nos provoca, fazer a partir de, até porque toda a sua obra está editada, não há grandes segredos por revelar:

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“Faz parte de uma programação um bocadinho mais vasta que parte da minha ideia de que quando um artista é verdadeiramente grande o seu legado pode ser terra fértil para que venham outros artistas e criem a partir disso. Até porque a obra de Sophia está toda estudada, editada, não há inéditos para descobrir, não há esse tipo de trabalho, e portanto achei que podia ser interessante fazer uma reavaliação daquilo que existe a partir de encomendas e de ter vários criadores a trabalhar a obra. Estreámos o ano com uma exposição, depois fizemos um concurso de composição, na Feira da Livro do Porto em Setembro teremos mais coisas, é bastante transdisciplinar”, explica Martim Sousa Tavares, neto de Sophia e maestro em A Menina do Mar.

E sim, quando dizemos que há um maestro, quando dizemos há um compositor e que há fauna marítima associada a certos instrumentos, é porque estamos perante um conto musical, é porque há música em cena. E claro, faz todo o sentido, deve ter sido até por isso que convidaram Ricardo Neves-Neves, encenador cujo trabalho tem girado em torno da música ao vivo, para liderar esta transmutação das palavras de Sophia para cena.

Fotos de Alípio Padilha

Além do que já referimos, Martim é também o responsável por esta iniciativa e pela programação das Comemorações do Centenário de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2019). Foi ele que foi ter com Susana Menezes, diretor artística do LU.CA – Teatro Luís de Camões, com a certeza que esta ideia faria todo o sentido para um teatro que se cinge à programação infanto-juvenil e foram eles, sobretudo Susana, que indicou o nome de Ricardo Neves-Neves.

“O Ricardo não trabalha só com a palavra, isto era desde o início um projecto que tinha que ter música e portanto teria que ser alguém com abertura para isso. O LU.CA é um velho teatro de ópera e a Susana estava muito interessada em ter ópera infantil, mas isso implicava uma adaptação do texto para libreto e o facto de ser cantado fazia com que ele pudesse perder alguma inteligibilidade, portanto acabámos por fazer este híbrido, tem uma grande componente musical, mas o texto é falado. E depois era muito importante para mim que o texto estivesse lá integralmente. Parte desta celebração é também respeitar a obra, portanto não queria aqui tesouradas no texto, nem uma adaptação, esse mínimo olímpico, com este selo do Centenário, tinha que estar lá”, explica Martim.

Portanto: não confundir isto com um musical. O texto é sempre dito e nunca cantado – já agora à boleia de um elenco maravilhoso composto por Ana Valentim, Catarina Rôlo Salgueiro, Nuno Nolasco, Rafael Gomes e Teresa Coutinho – e o compositor Edward Luiz Ayres d’Abreu gosta da ideia mencionada atrás por Martim Sousa Tavares, aquela coisa da ópera, uma vez que a música está no espectáculo do início ao fim, só não tem é cantores:

“A música é omnipresente e acompanha muito de perto o texto, ilustrando-o com cores muito subtis e há momentos na partitura em que se espera um diálogo estreito entre as intervenções musicais e as intervenções dos atores. Musicalmente trabalhámos a nossa orquestra em função de haver várias personagens associadas a determinados instrumentos, por exemplo, o peixe é o clarinete, quando o peixe está em cena o clarinete ganha mais importância, o saxofone está associado ao caranguejo, o polvo ao fagote, a menina ao violino, o menino à violeta, por aí. Naturalmente que, noutros momentos, os instrumentos se libertam dessas personagens e participam todos juntos na coisa”.

Fotos de Alípio Padilha

Edward Luiz Ayres d’Abreu – fundador e diretor do MPMP, Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa – garante que o que fez foi salientar, desvendar a música já presente nas palavras de Sophia, tudo isto numa linguagem que se quer orgânica e fluida, sem grandes cortes, e que se aproxime da ideia de sonho, o lugar em que o compositor acha que Sophia nos quer colocar através d’A Menina do Mar:

“Enquanto compositor aquilo que tentei fazer foi procurar a musicalidade patente no texto, que é imensa, e tentar traduzir aquilo em música. É claro que um compositor diferente faria de outra maneira, mas gosto muito de pensar nessa ideia de que o texto tem uma música já lá inscrita, que o meu trabalho foi apenas o de a revelar.”

Já Ricardo Neves-Neves garante que nunca lhe tinha passado pela cabeça fazer um espectáculo a partir de Sophia de Mello Breyner. “Até acho que não seria uma escolha óbvia para mim, pelo tipo de trabalho que tenho feito, os autores e a estética que tenho tido não é bem esta, mas às vezes chegam-te convites tão interessantes e tão pouco óbvios que ainda bem que eles existem”, confessa.

Isto não quer dizer que o diretor artístico do Teatro do Eléctrico não se relacione com Sophia, aliás, essa, para ele, é uma tarefa impossível para uma criança portuguesa: “Como qualquer criança portuguesa, Sophia de Mello Breyner faz parte das tuas primeiras leituras. Em criança li A Menina do Mar, A Floresta e O Cavaleiro da Dinamarca e portanto isto não era novidade para mim, além disso, estas palavras quase que nos correm nas veias, é intergeracional, faz parte de nós independente das idades. E o primeiro dia de ensaios não é bem o primeiro dia de ensaios, houve uma preparação, ainda que involuntária, para este projeto, ninguém fez uma primeira leitura como uma primeira leitura e portanto é muito vantajoso nesse sentido. Pode parecer que é artisticamente irrelevante ter o neto da Sophia a trabalhar connosco, mas não é, imagina o que é ir ter uma reunião a casa do Martim e ele mostrar-me fotografias, manuscritos, cartas, e de repente aquela grande escritora, aquela figura, é avó do nosso maestro e isso dá uma vontade extra para levar o trabalho mais longe”.

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Longe foi também o menino, que se enamora pela menina do mar, que cai num abismo de desconhecimento completo que tinha em relação ao mar, um abismo que o fascina e a faz não desistir de procurar a menina, ainda que esta, a mando dos seus patrões malfeitores, tenha aparentemente, às tantas, desaparecido para sempre. São duas crianças e três animais em descoberta, em brincadeiras típicas de água, chapinhar em liberdade e espontaneidade tonta.

“Não queria muito fechar leituras, mas é uma história de aventuras, de amizade e de amor, duas crianças a brincar no mar a imaginar mundos novos ou então é simplesmente como é que olhamos um para o outro e percebemos as diferenças um do outro e conseguimos ser compatíveis, é mais uma vez um trabalho sobre a tolerância, o autoconhecimento, o conhecimento do outro”, adianta o encenador.

E se há coisa que parece andar a passar ao lado deste mundo pós-moderno e pouco dado a meninas que só vivam na água é talvez esse tempo para o conhecimento alheio, para a tolerância. Sophia de Mello Breyner Andresen vem, por isso, como sempre, em muito bom tempo.