Ernesto Valverde nunca teve a vida propriamente facilitada. Quando pegou no comando técnico do Barcelona, depois de quatro temporadas ao serviço do Athl. Bilbao, o treinador espanhol herdava a pesada herança de Luis Enrique, que foi bicampeão, ganhou três Taças do Rei, uma Liga dos Campeões e uma Supertaça Europeia, mas também a dos técnicos anteriores: Tito Vilanova, que foi campeão numa época de especial dificuldade e que deixou uma marca em Camp Nou, ainda que por motivos pouco felizes; Pep Guardiola, que começou uma nova era em Barcelona e alcançou um extenso palmarés que inclui três Ligas espanholas e duas Ligas dos Campeões; e ainda Frank Rijkaard, que conseguiu levar os catalães à vitória na Liga dos Campeões depois de um jejum de mais de dez anos.

Mais do que tudo isto, Valverde sempre se viu a braços com o facto de ser, de forma óbvia, o menos mediático de todos estes, o menos polémico, o menos adorado pelos adeptos do Barcelona. Sempre foi um treinador de ondas e vagas, em alta quando as coisas corriam bem, muito criticado quando as coisas corriam mal. Desde 2017, ano em que chegou à Catalunha, Ernesto Valverde não conseguiu estabelecer uma era, uma imagem de marca ou sequer uma conquista que o deixe intrinsecamente ligado à história do Barcelona. Mais do que isso — e pior do que isso –, o treinador espanhol vai ficar inevitavelmente ligado à memória de duas das noites mais negras do historial recente do Barça.

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Depois de na temporada passada ter caído nos quartos de final da Liga dos Campeões ao permitir a reviravolta da Roma — ganhou em Camp Nou na primeira mão (4-1) e perdeu a segunda em Itália (3-0) –, Valverde conseguiu levar o Barcelona até às meias-finais da Liga dos Campeões pela primeira vez desde 2014/15, temporada em que os catalães conquistaram o troféu. A história, porém, encarregou-se de recordar o espanhol daquela noite no Olímpico de Roma, no início de abril do ano passado. Depois de vencer o Liverpool em casa (3-0), o Barcelona foi a Anfield ser goleado por 4-0 e ficou (outra vez) arredado da principal final europeia. A hecatombe, como lhe chamam os desportivos espanhóis, ganha contornos de pesadelo se tivermos em conta a eliminação do ano passado, a ausência de Roberto Firmino e de Salah do convocados do Liverpool e a saída precoce do Real Madrid ainda nos oitavos de final.

E Ernesto Valverde, como não podia deixar de ser, está a ser apontado como o principal responsável pela eliminação. O Mundo Deportivo, que esta terça-feira faz capa com a palavra “embaraço”, enumerou aqueles que diz serem os cinco pecados capitais do treinador. O primeiro é a impotência face à pressão do Liverpool e a falta de controlo, ou seja, a escassez de ligação entre os setores da equipa a o excessivo espaço permitido à zona de construção do ingleses, principalmente no primeiro golo (e já sem falar do último); depois, o número elevado de perdas de bola, algo que é diametralmente oposto à habitual filosofia do Barcelona e onde Jordi Alba foi o principal pecador, com 21; a falta de intensidade e de vontade de marcar um golo que decidiria a eliminatória, que fica exposta com o escasso par de faltas que os catalães fizeram na primeira parte; a ausência de eficácia, a qualidade que valeu a vitória em Camp Nou na semana passada e que não apareceu em Anfield, com oito oportunidades clamorosas a não serem concretizadas (muito graças a Alisson, é preciso referir); e, por fim, a incapacidade de reação, tanto no regresso para a segunda parte como depois dos golos de Wijnaldum como após o golo caricato de Origi, numa altura em que ainda restavam dez minutos para jogar.

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Depois do jogo, Valverde pediu desculpa aos adeptos e explicou que “o mais doloroso” era “repetir” a eliminação, depois da reviravolta da Roma na época passada. “É o segundo ano em que dão a volta contra nós numa situação assim e voltamos a ser eliminados. Queríamos estar muito concentrados para evitar isto. Quando sofremos um choque destes, temos de passar alguns dias horríveis com os nossos adeptos. Devemos sofrer a nossa penitência. Temos que nos reerguer”, garantiu o treinador, que adiantou ainda que não sabe de que forma é que este resultado pode afetar a sua manutenção em Barcelona — mesmo com a conquista do bicampeonato espanhol e com a final da Taça do Rei por jogar. “Não sei como me pode afetar. Não tivemos tempo de pensar nas coisas. Aqui estamos e o treinador tem que assumir a sua responsabilidade”, limitou-se a dizer Valverde, corroborado depois pelo presidente Josep Maria Bartomeu, que explicou que “a administração vai fazer uma profunda reflexão” mas remeteu todas as decisões para depois da final da Taça, a 25 de maio.

A exibição coletiva e individual do Barcelona, contudo, está a motivar uma divisão entre os principais jornais desportivos espanhóis. Se os afetos a Madrid ou a regiões que não a Catalunha sublinham a passividade de Messi e o aparente desaparecimento do argentino num jogo em que a equipa precisava dele, a imprensa catalã responsabiliza principalmente Jordi Alba, Busquets e Philippe Coutinho e deixa o capitão de fora, realçando que foi quase como uma “vítima” no meio do pesadelo. Nos principais argumentos dos primeiros, está o facto de o brasileiro Fabinho ter realizado uma exibição assombrosa que apagou Leo Messi, as 17 bolas perdidas e os seis passes errados, os dez minutos finais em que não conseguiu libertar-se da pressão inglesa e a falta de liderança em ocasiões difíceis, algo que já tinha sido visível em 2018 com a Roma, em 2017 com a Juventus e em 2016 com o Atl. Madrid.

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Do outro lado, os defensores do argentino lembram que Messi deixa a Liga dos Campeões enquanto melhor marcador da atual edição da competição (12 golos) e que todas as oito oportunidades flagrantes do Barcelona foram criadas ou concretizadas por ele — rematou duas vezes, tentou assistir Suárez, Coutinho e Alba nas outras seis — e goradas por Alisson. Os jornais catalães questionam então se o problema não será a companhia de Messi e os jogadores que o rodeiam, que jogam para ele e para quem joga, ao invés de uma prestação apagada do capitão. Seja certeira uma ou outra versão, a verdade é que Leo Messi não conseguiu evitar as lágrimas no balneário, segundo conta a Marca, e acabou por não sair de Anfield em conjunto com os colegas de equipa, já que ficou retido devido ao controlo antidoping e o autocarro da comitiva partiu para o aeroporto sem o argentino.

Já no Aeroporto John Lennon, por volta da meia-noite, Messi foi confrontado por algumas dezenas de adeptos que esperaram por ele e o criticaram, visivelmente desiludidos tanto com a eliminação como com o próprio jogador. O argentino ainda se virou e perguntou diretamente o que se passava mas foi rapidamente afastado daquela zona por Pepe Costa, braço direito que é praticamente inseparável do jogador. O AS conta que o ambiente na viagem de avião de regresso a Barcelona era pesado e não poupa nas palavras, garantindo que se sentia uma atmosfera “típica de um funeral”. Bartomeu trocou algumas palavras com os jogadores mas era Ernesto Valverde o mais afetado pela derrota, “mais ainda do que com a Roma”, explica o jornal espanhol: o treinador só conversou com o adjunto Jon Aspiazu durante todo o voo. Já Messi manteve o semblante fechado durante a viagem, limitando-se a falar com Pepe Costa, e voltou a encontrar alguns adeptos insatisfeitos na chegada a Espanha.