A goleada do Liverpool frente ao Barcelona entrou na grande enciclopédia do futebol como um dos maiores desafios realizados de sempre ao conceito de impossível. E não foi o único protagonizado por equipas britânicas nesta edição da Champions – ninguém pode esquecer a forma como o Manchester United, depois da desvantagem de dois golos que trazia de Old Trafford, foi ao Parque dos Príncipes dizer ao PSG que é preciso mais para ser rei do que investir milhões e milhões todos os anos. Apesar da significativa quebra após afastar o Manchester City na Europa, o Tottenham tinha exemplos práticos de como podia acreditar. Pelo menos, na teoria. O problema era o resto da história. E o adversário. O melhor elogio que se pode fazer a uma ideia de jogo como a do Ajax não é dizer que tem uma equipa de sonho mas sim uma equipa que faz sonhar. Essa foi a sua receita na fase de grupos. Nos oitavos com o Real Madrid. Nos quartos com a Juventus. Esta noite, chegou o pesadelo nos descontos.

Ajax foi ao estádio mais caro da Europa recordar Cruyff: não é preciso um saco de dinheiro para marcar golos

A história de Jordie Van der Laan é um bom exemplo de como o futebol do conjunto comandado por Erik ten Hag conseguiu apaixonar todos os seus seguidores – até mesmo aqueles que também jogam futebol e procuram ter uma carreira. O avançado de 25 anos, formado no JVC Ciujk e com passagens pelos modestos Juliana ’31 e Lienden, chegou no verão ao Telstar, não estava a ser muito utilizado e, perante o convite de um amigo com bilhetes para a primeira mão das meias entre Tottenham e Ajax, ligou para o clube a dizer que estava doente, tinha de ficar de cama por causa da febre e seguiu para Londres. O seu treinador, Mike Snoei, suspeitou. Os dirigentes do clube também. E as dúvidas ficaram desfeitas quando apareceu três vezes em grande plano na TV. Van der Laan ainda pediu desculpa, mostrou-se arrependido, explicou que sabia que não ia ser convocado e que os objetivos da equipa estavam atingidos mas não teve perdão mas acabou mesmo despedido. O que fez de seguida? Contou a sua história, perguntou se alguém conseguiria arranjar bilhete e foi para Amesterdão ver a segunda mão.

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Como um dia escreveu na L’Équipe Magazine Johan Cruyff, o antigo génio do futebol mundial que foi tricampeão europeu pelo conjunto de Amesterdão e dá hoje o nome à Arena do clube, “o futebol total não tem qualquer segredo”. “Fundou-se na posse de bola e no posicionamento dos jogadores no terreno. O objetivo é que quando um jogador recebe a bola tenha várias opções de passe e que mesmo escolhendo a pior a equipa adversária continue à sua procura. É por essa razão que continuo a sustentar que mais do que o resultado devemos continuar a fazer tudo para dar prazer ao público”, explicou. Na primeira parte, o Ajax voltou a ser isto e saiu para o intervalo a ganhar por 2-0; nos 15 minutos seguintes, esqueceu-se de tudo e deixou-se empatar; na última meia hora, podia ter fechado a eliminatória, teve uma bola no poste e foi afastado com um golo nos descontos. Houve mais um milagre com cunho inglês e o Tottenham chegou mesmo à final de Madrid com o Liverpool.

Sem David Neres, que foi dado como titular mas terá sentido algum problema durante o aquecimento e saiu das opções iniciais para dar lugar ao avançado Dolberg (com características diferentes, até por ser um avançado mais posicional do que o brasileiro), os holandeses tiveram um arranque de jogo fortíssimo com duas oportunidades flagrantes e um golo ainda nos cinco minutos iniciais: primeiro foi Tadic, num remate colocado de fora da área com o pé esquerdo a obrigar Hugo Lloris a um fantástico desvio antes do corte para canto (4′); depois foi De Ligt, num lance muito parecido com aquele com que fez o 2-1 em Turim com a Juventus, a ganhar espaço na área para cabecear sem hipóteses para o internacional francês (5′).

No minuto seguinte, porque essa coisa da “estrelinha” também conta, os ingleses tiveram uma chance clara para empatarem de imediato, com Son a avançar bem pela esquerda, a rematar ao primeiro poste onde ninguém contava (incluindo o guarda-redes Onana) mas a acertar no poste, desperdiçando aquela que seria a grande oportunidade do Tottenham para reentrar na discussão do jogo na primeira parte. Ainda houve, dentro da meia hora inicial, mais duas tentativas com algum perigo do sul-coreano e de Eriksen, além da exploração de diagonais que chegaram a dar ideia de mais um jogo de loucos como o de Manchester, quando os londrinos tiveram uma das derrotas mais saborosas da história que valeu a passagem às meias (4-3).

No entanto, o Ajax mostrava um pedigree vencedor que lhe permitia jogar bem mesmo quando as coisas não saíam como queria. Fosse no plano individual, como num lance onde Tadic inventou espaço onde ele não existia para chegar à área descaído sobre a esquerda e rematar rasteiro a rasar o poste (30′), fosse no plano coletivo, como na jogada que começou com uma recuperação a meio-campo, desenvolveu-se numa saída rápida e terminou com a assistência do sérvio para o tiro colocado de Ziyech, tão colocado que a bola pareceu enrolar-se nas redes de Lloris enquanto a Arena Johan Cruyff entrava em ebulição (35′).

No reatamento, Pochettino surpreendeu com Llorente no lugar de Wanyama. O Tottenham abdicou de um maior peso na zona central do terreno para ganhar uma referência na frente que fixasse os centrais holandeses e permitisse outro tipo de movimentos para as unidades mais móveis como Son, Dele Alli ou Lucas Moura. Sobretudo para o último, internacional brasileiro que nunca justificou propriamente os milhões pagos ao PSG, foi a melhor coisa que podia ter acontecido: depois de uma primeira ameaça por Alli (53′), o número 7 reduziu num contra-ataque rápido que começou com uma grande finta de Danny Rose (55′) e empatou após um erro de Onana na área, que teve uma enorme defesa apenas com Llorente pela frente mas falhou o mais fácil ao não agarrar a bola (59′). De rajada, os ingleses estavam apenas a um golo do seu milagre com meia hora por jogar. 

O Ajax, apesar do momento negativo que reabriu a eliminatória, foi conseguindo acalmar, voltar ao seu jogo habitual e travar a onda ofensiva de um Tottenham que depois criou perigo sobretudo de bola parada. E entre algumas dificuldades dos holandeses, Lloris ainda teve uma intervenção apertada a cruzamento/remate de De Ligt antes de dois tiros rasteiros de Ziyech que pareciam ser para golo mas que saíram ao lado e em cheio no poste (78′). Estava a chegar o ataque final dos londrinos. Com uma bola na trave por Vertonghen (85′). Com um remate perto da barra de Son (86′). Com o golo que mudou a eliminatória, de novo por Lucas Moura, no final do período de descontos (90+6′) e quando Lloris já tinha ido à área contrária num canto. O avançado de 26 anos que foi dispensado pelo PSG para contratar Neymar, Mbappé e companhia é que está na final da Champions.