É difícil falar da Roma de Itália sem falar de Francesco Totti. Totti é a figura maior de um clube que sempre lhe deu menos do que aquilo que merecia mas pelo qual o avançado fez tudo. Em maio de 2017, entrou ao minuto 54 da receção da Roma ao Génova para substituir Mo Salah e despediu-se do Olímpico e dos adeptos que o tinham idolatrado nos 25 anos anteriores. É difícil dizer que qualquer outra pessoa é um símbolo de um clube que teve um jogador, um dos melhores na sua posição nas últimas décadas, que nunca jogou em qualquer outro lado, que pendurou as botas em conjunto com a braçadeira e que sempre privilegiou a cidade e o país onde nasceu aos voos mais altos que lhe poderiam ter dado mais títulos, mais vitórias, mais alegrias.

E talvez tenha sido por isso que os adeptos da Roma decidiram chamar capitan futuro, capitão futuro, a Daniele De Rossi. Até ao final da temporada 2016/17, Totti era o capitão da equipa da capital italiana e era quase sacrilégio invocar que qualquer outro jogador, qualquer outro nome, merecia a braçadeira da Roma. De Rossi, porém, representava demasiado e era demasiado importante para ser apenas mais um: De Rossi era, sempre foi, o discípulo de um Totti que não precisou de se preocupar com a sucessão. Esta terça-feira, aos 35 anos, o médio italiano anunciou que vai deixar o clube de sempre. Mas ao contrário daquele que substituiu, De Rossi ainda não se despediu definitivamente dos relvados e adivinha-se uma última aventura pelos Estados Unidos, pela Ásia ou pelo Médio Oriente.

“Há quase 18 anos, Daniele De Rossi, muito jovem, fez a sua estreia com a Roma contra o Anderlecht. Com o Parma, no Olímpico, vai jogar o seu último jogo com a nossa camisola. Será o fim de uma era”, escreveu o clube italiano nas redes sociais, recordando o primeiro jogo do médio pela equipa principal da Roma. Em outubro de 2001, com 18 anos, De Rossi estreou-se pela mão de Fabio Capello num jogo da fase de grupos da Liga dos Campeões contra os belgas do Anderlecht. Depois de lutar por um espaço na linha intermédia dos giallorossi durante o primeiro ano – entre o trio brasileiro Francisco Lima, Emerson e Marcos Assunção e a classe de Tommasi –, De Rossi segurou um lugar no meio-campo de Capello e dos sucessores Prandelli, Völler e Spalletti e foi parte fulcral da equipa que ficou em segundo lugar da Liga italiana em 2003/04 e que chegou a finais consecutivas da Taça de Itália em 2005, 2006, 2007 e 2008 (só conquistou as duas últimas).

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A intensidade que nunca esconde e a forma aguerrida como disputa cada lance, cada jogada, cada bola, garantiu-lhe a reputação de jogador agressivo que não evita faltas, entradas mais duras e cartões amarelos. De forma a tirar algum proveito da fama a que já não escapa, De Rossi mostrou algum sentido de humor quando decidiu tatuar um sinal de perigo na própria perna. Ainda assim, é um exemplo no que toca ao fair play e uma lufada de ar fresco numa altura em que o respeito pelo outro e a verdade dentro e fora das quatro linhas parece estar fora de moda. Em março de 2006, durante um jogo com o Messina em que a Roma estava a vencer, o médio foi o protagonista de uma história que parece ter tido lugar nos Distritais ou num filme demasiado romanceado para ser realista.

O médio assumiu a fama e tirou-lhe o proveito com uma tatuagem irónica

De Rossi marcou um golo de cabeça na sequência de um canto e aumentou a vantagem da Roma: o golo foi validado e o árbitro Mauro Bergonzi apontou de imediato para o centro do terreno. De forma imediata, o médio correu em direção ao árbitro e confessou que tinha marcado o golo com a mão e com a cabeça, garantindo que o lance não tinha sido legal. A imagem de bad boy foi progressivamente acabando por se tornar uma imagem de um bad boy com coração de ouro e De Rossi alimentou essa ideia com atitudes como a que teve com Pietro Lombardi, roupeiro da seleção italiana que conquistou o Mundial 2006: quando Lombardi morreu, anos depois da vitória italiana na final do Campeonato do Mundo da Alemanha, o médio colocou a medalha de campeão do mundo no caixão do roupeiro na altura do funeral.

De Rossi foi sempre visto como o sucessor de Totti enquanto capitão da equipa da capital italiana

De forma inevitável face ao nível do Inter do final da primeira década desde século e ao poderio da Juventus nos últimos oito anos, Daniele De Rossi acaba por ser uma daquelas figuras históricas de um clube que pouco ou nada conquistaram: à semelhança de Alan Shearer no Newcastle e Steven Gerrard no Liverpool, por exemplo. O médio deixa o Olímpico 18 temporadas depois com um palmarés curto que só inclui duas Taças de Itália e uma Supertaça italiana. Mas acima de tudo isso, deixa a certeza de ter sido um dos melhores médios da sua geração, com a garra que os milhões fazem desaparecer e a agilidade e visão raras num médio defensivo que são fruto dos primeiros anos enquanto avançado nas camadas jovens do Ostia Mare.

Depois de sofrer uma lesão muscular a meio de abril, no jogo contra a Udinese, De Rossi tem estado afastado dos jogos da Roma mas nunca do banco de suplentes, onde é uma presença importante ao lado do treinador Claudio Ranieri. No último domingo, durante a vitória em casa frente à Juventus, De Rossi foi o homem em todo o Olímpico de Roma que mais festejou o golo de Florenzi, capitão na sua ausência, que deu vantagem à equipa. Até porque, por muito que Francesco Totti seja a figura maior e incontornável do clube, Daniele De Rossi é a representação mais fidedigna daquilo que um jogador da Roma terá sempre de ser: um gladiador. Com a barba comprida, o cabelo desalinhado, os olhos claros e os gritos desmedidos, De Rossi é um gladiador. Na última jornada da Serie A, contra o Parma, o gladiador vai deixar o Coliseu. Mas ainda não é tempo da reforma.