Fosse pelas novelas no Verão Quente de 1993 que levaram Paulo Sousa e Pacheco da Luz para Alvalade, fosse pela separação de apenas um ponto no Campeonato, fosse pela possibilidade de quebrar um jejum com 11 anos dos leões, o Sporting-Benfica em Alvalade a 14 de maio de 1994, faz esta terça-feira 25 anos, já era aguardado com uma expetativa acima do normal. Depois, com o resultado, transformou-se num dérbi eterno, entre o top 10 dos mais marcantes de sempre entre os rivais lisboetas.

Fugas para local incógnito, viagens de madrugada, namoros sem casamento: os bastidores do Verão Quente de 1993

Logo à cabeça, e de forma incontornável, há duas histórias que saltam de imediato à memória: a noite de sonho de João Vieira Pinto, o nota 10 do jornal A Bola que apontou um hat-trick na primeira parte menos de um ano depois de ter estado próximo de assinar pelos verde e brancos; e o pesadelo de Carlos Queiroz depois de trocar Paulo Torres por Pacheco, numa substituição que abriria corredor (literalmente) à goleada dos encarnados no segundo tempo. Mas há mais memórias dessa noite chuvosa que deixou o Benfica de Toni muito perto do título que conquistaria umas jornadas depois. E dos dois lados da barricada.

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O estágio no Guincho, a surpresa Abel e a frustração de Rui Costa

Em declarações à Lusa, Toni, treinador do Benfica, ainda hoje tem consciência de como uma opção técnica pode marcar um jogador. “Essa decisão é daquelas que mais me marcaram na carreira. E o Rui [Costa] não me perdoa o facto de nesse dia ter jogado apenas os últimos 20 minutos”, assumiu. Jesualdo Ferreira, adjunto, entendia que o jovem médio ofensivo era melhor para esse encontro. Toni, de surpresa, mudou. Depois dos castigos internos aos russos Kulkov, Yuran e Mostovoi, com Kenedy a crescer como lateral esquerdo, Schwarz foi sempre o “trinco” da equipa com Paneira, Rui Costa, Isaías, João Pinto e Ailton (a contratação da época após o Verão Quente de 1993) à frente. Sem que nada o fizesse prever, e em vésperas do jogo após um estágio no Guincho que começou logo após o inesperado empate na Luz com o Estrela da Amadora, a ideia para Alvalade mudou: Veloso, que tinha estado fora quase dois meses por lesão, voltou como lateral direito, Abel Xavier reforçou o meio-campo ao lado do sueco e Rui Costa foi o preterido. A solução funcionou mas o agora diretor desportivo das águias não esquece.

Do prémio extra por golo antes do jogo à desilusão de Cherbakov na RTP

Motivado pela possibilidade de poder quebrar um jejum de 11 anos sem a conquista do Campeonato e contando com o forte apoio do público em Alvalade (que na altura se sentia mais nos jogos grandes porque as equipas entravam separadas em campo, o que provocava outro tipo de reações), o Sporting entrou a todo o gás e, mesmo depois de estar em vantagem por 1-0 e 2-1 na primeira parte, nunca deixou de apontar baterias à baliza de Neno, o guarda-redes do Benfica. Antes do arranque do jogo, falou-se num prémio extra por golo marcado além do já discutido (no início da época) prémio de jogo pela vitória, tal como já tinha acontecido noutras partidas anteriores como a meia-final da Taça de Portugal com o Lourosa – até pelo momento de confiança que a equipa atravessava, com apenas uma derrota desde o dérbi da Luz em dezembro (2-0 nas Antas, quando acabou reduzido a oito) que teve uma carga emocional grande por ser o primeiro após o acidente que atirou Sergei Cherbakov para uma cadeira de rodas. Curiosamente, o russo foi à RTP assistir ao dérbi dos 6-3, mostrando-se desolado no final do encontro. “Estou triste e tenho muita pena pelos meus companheiros. O João Pinto foi a figura do jogo”, disse.

Um diferendo com a Federação que tirou quatro reforços a Carlos Queiroz

Quando Carlos Queiroz substituiu Bobby Robson no comando do Sporting em dezembro de 1993, após uma derrota na Áustria que ditou o afastamento da Taça UEFA frente ao Casino Salzburgo, o técnico identificou a necessidade de haver reforços para o centro da defesa (até porque via Peixe como médio defensivo e não como central) e os mesmos já estavam garantidos… e não ficavam por aí: nesse mercado, os leões tinham assegurado o regresso do internacional brasileiro Ricardo Rocha, que estava no Santos após duas épocas no Real, a dupla Oceano-Carlos Xavier que estava na Real Sociedad (que chegariam apenas no verão de 1994) e Yekini, avançado que se destacava no V. Setúbal. Nenhuma das contratações avançou devido a um diferendo entre o clube a Ovarense por causa da contratação de Luís Manuel, com a Federação a impedir o Sporting de inscrever jogadores. Sem Peixe, castigado para o dérbi tal como Juskowiak depois do vermelho no Dragão, Queiroz repetiu o onze utilizado com o Beira-Mar (4-0) com Paulo Sousa sozinho no meio e Capucho, Figo, Balakov, Iordanov e Cadete na frente – e aos 60 minutos, a perder por 4-2, teve de lançar o médio Poejo no lugar de Iordanov para tentar ainda (sem sucesso) ganhar essa zona do terreno.

O maior contingente policial, o flop da “candonga” e 85 mil contos de receita

Há alguns pormenores no dérbi de 14 de maio de 1994 que, um quarto de século depois, seriam muito improváveis de ver. Por exemplo, a entrada de guarda-chuvas maiores com cabo de metal (agora proibido nas competições profissionais), que serviram para abrigar milhares de pessoas quando a chuva aumentou no decorrer do jogo. E há outros mais realistas, como as dezenas de bolas coloridas que foram chutadas pelos jogadores para as bancadas antes do apito inicial, numa campanha do jornal O Jogo. Mas este jogo, que a RTP estimava que fosse visto por três a três milhões e meio de espetadores, teve outros pontos de relevo a provar a dimensão quase única que teve na altura: foi acionado a maior operação policial de sempre (até então) para um espetáculo desportivo, com 750 agentes dentro e fora de Alvalade; a receita só dos bilhetes vendidos para o jogo (fora dos cativos de época) foi de 85 mil contos – 425 mil euros; e alguns “candongueiros” que andavam pelos arredores do recinto a tentar vender ingressos tiveram de baixar os preços porque há muito se pensava que a lotação esgotada e faltava-lhes a procura.

Da conversa de João Vieira Pinto com a mãe à substituição de Paulo Torres

Cá fora, as reportagens da RTP mostravam não só a confiança dos adeptos de Sporting e Benfica mas também algumas coisas mais inusitadas mas que aconteceram antes do dérbi, como um “homem estátua” de cara pintada que aproveitou os milhares e milhares que se deslocaram a Alvalade para ganhar algum dinheiro (e que achava que os encarnados ganhariam por 2-0). No entanto, quando se pensa no 6-3 há duas figuras incontornáveis e cada uma com a sua história: como o próprio contou à BTV muitos anos depois, João Vieira Pinto, autor de um hat-trick depois de ter estado muito perto de assinar pelo Sporting no ano anterior (e que mantinha uma boa relação com o técnico leonino, que o orientou nas seleções), não esqueceu uma conversa que teve com a mãe – que nunca ia aos seus jogos, com medo de ver o filho lesionar-se – antes do jogo, ficando na cabeça com uma frase que naquele dia lhe pareceu dita com outro sentido: “Vamos ganhar!”; já Carlos Queiroz, “crucificado” por ter substituído ao intervalo Paulo Torres por Pacheco, explicou depois que estava a tentar explorar a presença do experiente Veloso na direita da defesa encarnada após lesão, que fez algo a que Alex Ferguson chamava de gambling mas que não resultou – e como resultado surgiram os três golos do Benfica na segunda parte, por Isaías (dois) e Hélder, começaram todos por esse flanco.