Chegada ao fim mais uma temporada, muitos de entre nós, olhando para trás, suspeitam de que talvez tenham razão os caras-de-pau sérios e bem-pensantes que lamentam o tempo que devotamos a acompanhar uma atividade que pode, em bom rigor, ser reduzida a vinte e dois sujeitos aos pontapés a uma bola na esperança de a ver entrar numa baliza.

Por misteriosa bruxaria, talvez sinal do fim dos tempos, a atenção que deveríamos dedicar a questões bem mais prementes é gasta em ansiosa expectativa do desfecho de um campeonato nem sempre bem disputado e envolto em inférteis discussões acerca de papoilas saltitantes hipoteticamente adiantadas em relação à linha defensiva adversária. Lembram-nos as eleições europeias, alertam-nos para festivais de jazz ao ar livre e, ainda assim, fazemos orelhas moucas e preferimos concentrar-nos em gerir convenientemente o nosso guarda-roupa para que, no dia tão esperado, o par de peúgas que galhardamente calçamos seja o adequado para garantir o favor dos deuses na direção do clube do nosso coração.

Deixo para outros a demonstração de como o futebol se transformou nas últimas décadas num sofisticado desporto semelhante a um jogo de xadrez, se o cavalo e a rainha tivessem tatuagens tribais ao longo dos braços e fossem dotados de autonomia e de uma inteligência assinalável. O que parece estar em causa num jogo de futebol não parece ser bem isso, mas apenas a garantia de que, no final, tudo está no sítio certo: a bola no fundo da rede e os adeptos na rotunda prometida.

A descrição de um jogo de futebol como um conjunto de miúdos a correr desenfreadamente num relvado é, em bom rigor, verdadeira. No entanto, como acontece com todas as coisas que realmente importam, uma descrição factual, fria e seca não permite perceber nada do que se passa. Os mesmos que nos acusam de falta de bom senso por amar o desporto-rei comovem-se ao verem mulheres, mascaradas de pessoas que não existem, atirar cabeças postiças de outras mulheres, que também não existem, de uma muralha abaixo. Muralha essa que se situa numa terra por sinal inexistente. Imaginamos, aliás, a censura que os supracitados caras-de-pau nos dirigiriam por dispensarmos demasiado tempo, dinheiro e artimanhas a tentar tocar com a boca na boca de pessoas por quem garantimos sentir afecto.

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Para justificarmos este inusitado interesse, talvez ajude descrever o futebol como uma série televisiva. Justificaria certamente que demasiadas horas de programas televisivos se dediquem a encontrar o escritor-fantasma por detrás disto tudo, a entidade diabólica e misteriosa que, na sombra, escreve o enredo, dita as ordens e designa vencedores e vencidos. Mas aceitar que o futebol é uma série (ou outra qualquer construção narrativa) implica aceitar que é uma história sem autor, em que o desfecho de cada temporada não é definido por um escritor ou cineasta, mas por uma conjugação quase infinita de factores (jogadores, treinadores, árbitros, adeptos e dirigentes, sim, mas também conjugações astrais, condições climatéricas e, talvez até, brincos perdidos em festejos de golos). Factores esses que nem sempre conseguimos identificar ao certo e que procuramos apenas garantir que jogam a nosso favor da melhor maneira possível. Este bizarro algoritmo que gera o tão aguardado destino final assemelha o futebol à vida, ao quotidiano misterioso que imaginamos controlar, mas que nos foge irremediavelmente por entre os dedos apesar dos nossos melhores esforços.

É talvez isso que confusamente aprendemos com o futebol: admirar o bando de jogadores que o destino ditou que jogasse pelo nosso clube treina-nos a resignação diante da fortuna, daí que qualquer adepto com um mínimo de juízo repudie veementemente a hipótese de passar a torcer por um outro clube que não o seu apenas porque este joga melhor à bola, ganha mais vezes ou tem um estádio mais convenientemente localizado.

Quando tinha dez anos, o clube do qual sou adepto ficou em sexto lugar no campeonato e o meu pai, na sua infinita sapiência, levou-me a todos os jogos. Pouco depois, o serviço militar em Portugal foi abolido. Demorei mais tempo do que me orgulho a perceber que as duas coisas não estavam relacionadas. A meu ver, tudo o que a tropa me teria porventura a ensinar tinha-se tornado obsoleto diante daqueles intensos meses de trauma, resiliência, sentido de comunidade e formação de carácter. Ver a minha equipa perder em casa dois a zero com o Alverca foi o meu Ultramar.

Sacrifiquemos pois o nosso melhor borrego em libação aos deuses da grama e preparemo-nos para o que sábado nos reserva, na certeza porém de que se o nosso clube não se sagrar campeão, renegaremos este texto e reconheceremos razão aos que lamentam o tempo que perdemos com um jogo de crianças que, bem vistas as coisas, não tem importância rigorosamente nenhuma para nós, que sempre preferimos um bom vinho e um vinil do Coltrane.

joaopvala@gmail.com