Os dados que produzimos no nosso dia a dia, desde os sítios onde vamos, as coisas que compramos até aos serviços que consumimos, valem dinheiro. As empresas de redes sociais e motores de busca, como o Facebook e a Google, que o digam. Então, se estes dados valem dinheiro — há quem lhes chame o “petróleo do século XXI” — porque é que os cidadãos não recebem uma remuneração pela produção destes dados? A ideia não é nova, está a ser equacionada nos EUA, e foi proposta esta terça-feira na Portugal Smart Cities Summit, na FIL, uma organização da Fundação AIP com o apoio da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP).

A conceção de “um modelo de remuneração do cidadão pela geração de valor económico suportada pelos dados por si gerados (os “data dividends”) é uma das 30 propostas apresentadas por António Almeida Henriques na Portugal Smart Cities Summit. O presidente da câmara municipal de Viseu, que coordena a secção de Cidades Inteligentes na ANMP), apresentou 30 medidas que resultam das reflexões feitas ao longo da Smart Cities Tour 2019 — em Faro falou-se de economia e inovação, de mobilidade suave em Aveiro, da cidade como plataforma em Lisboa, de cidades circulares em Vila Real, da cidade inclusiva em Setúbal, das alterações climáticas em Ponta Delgada e, no Funchal, a abordagem das Happy Cities, Happy Island.

A Smart Cities Tour 2019 foi uma organização pela Associação Nacional de Municípios Portugueses, pela Câmara de Lisboa e pela Nova Cidade – Urban Analytics Lab (liderada pelo professor Miguel Castro Neto). O Observador esteve em reportagem no evento realizado em Lisboa, na sede da Altice, no final de fevereiro.

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As 30 propostas apresentadas esta terça-feira por Almeida Henriques — batizadas de PORTUGAL+ — dividem-se em vários grupos.

Na área da identidade, propõe-se:

1. Construir bases de conhecimento do património, recursos e competências identitários e distintivos (e sua disponibilização de forma aberta);
2. Criar bases abertas de conhecimento das dinâmicas do território (economia, cultura, desporto…);
3. Dotar o território nacional de uma base de conhecimento espacial aberta cobrindo aspetos como cadastro, infraestruturas, serviços de interesse comum, meteorologia, etc.;
4. Apostar na cultura e tradição como potenciadores de novos modelos de desenvolvimento económico inclusivo;
5. Identificar pilares locais potenciais motores da transição para a economia circular;
6. Promover medidas propostas pelo cidadão na governação do território.

Sobre a aposta no capital humano, Almeida Henriques recomenda:

7. Criar conselhos estratégicos, de alto nível de base local, envolvendo representantes território/empresas/academia para criar plataformas colaborativas de captação de investimento;
8. Estabelecer parcerias entre território/empresas/academia focadas em investigação aplicada aos desafios reais do território;
9. Formar recursos humanos, incluindo os quadros municipais, em áreas emergentes resultantes da transformação digital e da inteligência artificial;
10. Criar laboratórios vivos de teste e prototipagem de novos produtos e serviços;
11. Promover a partilha de boas práticas e a criação de comunidades de interesse;
12. Desenvolver ações visando alterar hábitos e comportamentos indispensáveis para combater as alterações climáticas e promover a necessária evolução da economia linear para a economia circular;

Ao nível das infraestruturas, as propostas são:

13. Apostar em plataformas de inteligência urbana que derrubam silos organizacionais e promovem a construção de modelos de planeamento e gestão mais eficazes e eficientes;
14. Criar incubadoras de empresas e aceleradores que promovam a cocriação de novos produtos e serviços de inteligência urbana, utilizando os municípios como espaço de experimentação;
15. Promover abordagens integradas de planeamento e gestão da mobilidade, com particular relevância para a aposta na intermodalidade, mobilidade ativa e nos modelos de uso partilhado;
16. Investir em serviços e infraestruturas mais sustentáveis e resiliente promovendo ganhos de eficiência na utilização de recursos e redução da pegada carbónica;
17. Apoiar a criação de redes locais de IoT (Internet of Things);
18. Sensorizar o território e gerar dados capazes de suportar o conhecimento do seu metabolismo.

Há outro ponto crucial num país onde ainda existem “autênticos buracos negros no País — e ninguém se fixa, seja um casal com filhos ou uma atividade económica, num território sem conectividade”:

19. Assegurar a cobertura integral do território nacional com acesso à Internet e comunicações de voz;
20. Oferecer acesso livre à utilização das redes locais de IoT para ligação de sensores;
21. Criar um modelo de identidade digital local que suporte um ponto de contacto único para todas as interações (bidirecional) entre cidadão/empresa e administração local;
22. Incrementar o desenvolvimento de modelos de participação ativa do cidadão;
23. Utilizar a internet de tudo como alavanca para a criação de novos modelos de participação assentes na gamificação;
24. Apostar nas tecnologias de informação e comunicação para a regeneração dos bairros e comunidades locais através de novos e inspiradores modelos de confiança e partilha.

Finalmente, na área dos dados, a Associação Nacional de Municípios Portugueses propõe:

25. Construir modelos transparentes de recolha e armazenamento de dados;
26. Garantir a privacidade, segurança e uso ético dos dados;
27. Promover a disponibilização aberta dos dados (portais locais de dados abertos) sem limitações ao seu uso, inclusive para fins comerciais capazes de alavancar desenvolvimento económico através da criação de novos produtos e serviços;
28. Incentivar o uso dos dados abertos em modelos colaborativos de cocriação;
29. Apoiar a adoção de modelos de tomada de decisão suportados por dados, incluindo administração local, empresas e cidadãos;
30. Conceber um modelo de remuneração do cidadão pela geração de valor económico suportada pelos dados por si gerados (“data dividends”).

Esta última proposta, relacionada com os data dividends, ganhou notoriedade no início do ano quando o governador da Califórnia, Gavin Newsom, anunciou que o estado norte-americano (onde estão as grandes firmas de Silicon Valley) iria apresentar uma proposta concreta para avançar com uma medida deste género.

A ideia dos data dividends inspira-se no que há várias décadas é feito no Alaska, um estado onde cada cidadão recebe uma porção dos lucros obtidos pelas empresas de petróleo e gás (através do fundo que foi criado — o Alaska Permanent Fund — para garantir que as pessoas recebem pelo menos 25% dos lucros que as empresas geram a partir daquilo que retiram do subsolo). O fundo serve também, para gerir investimentos em várias áreas, no fundo com a intenção de, a pensar nas próximas gerações, preparar um futuro em que se esgotam os recursos naturais).

No caso dos dividendos sobre dados, as contas podem não ser tão fáceis de fazer, até porque não é tão fácil assim calcular quanto valem os dados. Estruturar um dividendo pelo pagamento de dados poderia passar por aplicar uma espécie de imposto às empresas privadas pelos dados que recolhem — ou, no caso dos dados públicos, beneficiar de alguma forma os cidadãos pela partilha dessas informações.

Porém, de um modo geral, quando se fala em “cidades inteligentes”, Almeida Henriques diz que “se há 40 anos era crítico levar a eletricidade, a água, o saneamento, as estradas, às diferentes povoações, hoje a nossa focalização continua nestes problemas ainda por resolver (ainda existem territórios sem estradas, sem água e saneamento, ainda faltam equipamentos ou outros precisam de remodelação como Escolas, Centros de Saúde, Instalações Desportivas) mas as questões da educação, da cultura, do desporto, do apoio social, da captação de investimento, da promoção turística, entre outras, estão no centro da nossa atenção”.

Assim, “o desafio das cidades, nos dias de hoje, é responder às diferentes questões, à participação dos cidadãos, a novos modelos de relacionamento com estes nos diferentes serviços que lhes prestamos, no acesso aos dados, na mobilidade, na eficiência energética, nas questões conectadas com o ambiente como a limpeza, os jardins, as florestas urbanas, a recolha de resíduos, o fornecimento e tratamento das aguas, a resposta cultural, as plataformas na educação e nas áreas sociais, na proteção civil, entre outras”.

Depois da tour por várias cidades portuguesas, na Portugal Smart Cities Summit foi deixado, por Almeida Henriques, o desafio de “pensar e executar as cidades do presente e do futuro em interação com os territórios à sua volta, numa lógica de uniformização do acesso, lógicas mais sustentáveis com uma mobilidade mais amiga do ambiente, partilhada, democrática, consonante com as mudanças de mentalidade em curso”.