– Jorge Nuno Pinto da Costa, isto está complicado…
– ‘Tá mas olhe: o que é importante é que atiram com pedras, não deixam receber a taça, insultam toda a gente… Mas o que é importante é que estamos na capital do império. Estou feliz com este espetáculo…
– Oh Pinto da Costa…
– Estou feliz, que lindo que isto é…
– Isto acontece em todo o lado…
– Olhe, olhe, que bonito, que bonito…
– Acha que a polícia não está a prestar um bom serviço?
– Que bonito… Mas isto faz parte do espetáculo da capital do império.
– Não é a capital do império, isto acontece em todo o lado.
– Gravem, espero que estejam a dar porque isto é lindíssimo.
– Não, não, isto acontece em todo o lado.
– Estamos no ano da Cultura, de 1994…
– Até parece que isto no Porto estas coisas não acontecem…
– Não… Acho isto lindíssimo, é espetacular. Uma maravilha, estou encantado. A ministra de certeza que também está encantada.
– A ministra não quer cá vir abaixo…
– Pois não porque ela não é tola, senão não era ministra.
– Mas vão lá acima ou não?
– Não, vamos esperar que atirem primeiro as pedras todas cá para baixo que é para depois podermos ir.
– Está complicado, de facto.

Foi a entrevista possível de Francisco Figueiredo a Pinto da Costa, presidente do FC Porto, em direto para a RTP. Nas bancadas, sobretudo na central, continuavam os tumultos entre adeptos do Sporting e polícia, com as manifestações de indignação a irem da tribuna onde estava o presidente da Federação, Vítor Vasques, aos jogadores dos azuis e brancos, que tiveram uma tentativa inicial de ir receber as medalhas e o troféu pela conquista da Taça de Portugal de 1994 mas cedo voltaram para trás perante os “grandes pedregulhos” que iam sendo arremessados, como salientava a reportagem de pista do canal. Foi há 25 anos.

Desde a primeira Taça de Portugal, em 1938/39, com a vitória da Académica frente ao Benfica (4-3), FC Porto e Sporting apenas por uma vez se tinham cruzado na final da Taça de Portugal, com os leões a ganharem no encontro de repetição por 2-1 após o empate a uma bola com golos de Vítor Gomes e Manuel Fernandes na segunda parte (Seninho reduziu para os dragões). Ainda assim, esse encontro de 1994, que também obrigou à realização de uma finalíssima para se apurar o vencedor, era mais do que a simples disputa de um troféu. E promoveu caminhos bem distintos para cada um dos clubes.

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“O FC Porto sempre foi exímio em termos históricos a aproveitar da melhor forma alguns episódios como fator de aglutinação. Nesse ano, a contratação de Bobby Robson pouco depois de ter saído do Sporting era um deles, ainda que nós não tivéssemos nada a ver com isso porque estávamos na Federação, fomos contactados quando o Sporting procurava treinador e aceitámos”, destaca José Alberto Costa, antigo jogador do FC Porto que nesse ano era adjunto de Carlos Queiroz nos leões. “A rivalidade vai sempre existir mas a presença de Robson foi uma motivação extra. Não por vingança mas por fator de aglutinação”, acrescenta, perante um cenário de antecâmara daquele que viria a ser um histórico penta para os dragões no Campeonato.

Bobby Robson não ganhou títulos no Sporting mas conseguiu dois Campeonatos, uma Taça e duas Supertaças no FC Porto (Simon Bruty /Allsport)

Rebobinemos o filme dessa época: no verão de 1993, que ficou conhecido no futebol português como o verão quente, o Sporting “atacou” o Benfica e contratou Paulo Sousa e Pacheco (e podiam ter sido mais) ao rival lisboeta para reforçar o plantel na segunda época de Bobby Robson, inglês que tinha sido recrutado ao PSV em 1992; já o FC Porto, depois do bicampeonato com Carlos Alberto Silva, viu o brasileiro sair para o Cruzeiro e apostou no regresso de Tomislav Ivic. No final da primeira volta, ambos já tinham trocado de técnico: os leões, que estavam com os mesmos pontos do que os outros candidatos ao título à 11.ª jornada, prescindiram do inglês depois da eliminação na Taça UEFA, frente ao Casino Salzburg, e apostaram em Carlos Queiroz, que estava então na Federação; os dragões, depois de um período com três empates e uma derrota seguidos, estabilizaram a nível de resultados mas viram sair o croata (que ficaria como interino da seleção do seu país) e asseguraram… Robson. O terceiro lugar no final da 17.ª jornada passaria a segundo no final da prova, com a final da Taça de Portugal por disputar.

Fugas para local incógnito, viagens de madrugada, namoros sem casamento: os bastidores do Verão Quente de 1993

“Era um troféu que queríamos muito ganhar porque o clube há muito tempo que não ganhava nada e tinha também havido o jogo dos 6-3. Tínhamos de retificar essa noite para compensar a frustração dos nossos adeptos e também a nossa. No balneário havia a noção clara de que aquele plantel dava para sermos campeões e não conseguimos. Efeito Robson? Na final e na finalíssima em si acho que não se sentiu, até porque já tinha passado algum tempo e tínhamos também jogado nas Antas para o Campeonato; agora, na altura em que foi despedido teve efeito e grande porque nenhum atleta estava a contar com isso”, recorda Nelson, lateral direito então do Sporting que passaria dois anos em Inglaterra (Aston Villa) antes de reforçar os portistas.

O primeiro jogo, a 5 de junho, pode resumir-se num minuto após os 120 disputados entre tempo regulamentar e prolongamento: muito calor, demasiado calor, excesso de calor e pouco mais do que uma gota de oportunidades flagrantes. “Andámos ali todos a meio-campo, com um cansaço e uma saturação que se começou a sentir mais cedo do que é normal. Estava tão quente que ainda me lembro de familiares e amigos meus dizerem que até a água esgotou nos bares”, conta o lateral. Próxima etapa? A finalíssima, a 10 de junho, uma sexta-feira de feriado, com o Jamor com menos pessoas do que seria normal numa decisão.

Em 1994 ainda havia o hábito entretanto perdido dos guarda-redes colocarem uma toalha presa de lado nas redes, com garrafas de água em baixo junto ao poste. Ainda assim, a probabilidade de acertar lá era diminuta, até pela colocação “secundária” no espaço de uma baliza – nesse dia, o encontro foi para prolongamento com dois grandes golos de dois defesas esquerdinos onde a bola quase ficou enrolada na toalha de Lemajic e Vítor Baía, apontados por Rui Jorge (35′) e Vujacic (55′). Mais um tempo extra, num total de 240 minutos em cinco dias, mas aqui com uma história praticamente sentenciada no 2-1 marcado por Aloísio de penálti depois de Peixe ter cortado com a mão um lance em cima da linha de golo e ser expulso. “Já não tínhamos capacidade física para mais e pouco depois ficámos com nove porque o Pacheco também foi expulso. Por muito que quiséssemos, já não podíamos fazer nada”, admite Nelson. O FC Porto acabava de carimbar a sua oitava vitória na Taça de Portugal, contra 22 do Benfica e 11 do Sporting. Mas o pior da festa ainda estava para vir na altura de receber o troféu.

Os jogadores do Sporting já tinham recolhido entretanto aos balneários quando a primeira tentativa do capitão João Pinto e companhia para chegar à tribuna foi “anulada” perante os protestos dos adeptos verde e brancos que estavam na zona da central, tendo mesmo havido confrontos e arremesso de pedras e garrafas perante a incapacidade das autoridades em controlar a revolta dos presentes naquela bancada – e que motivou a entrevista supracitada de Pinto da Costa no relvado. Mas já antes, enquanto o encontro decorria nas quatro linhas, Luís Duque, então presidente da Associação de Futebol de Lisboa, tinha abandonado o seu lugar na tribuna por se sentir envergonhado com o que passava em campo e Manuela Ferreira Leite, na altura ministra da Educação, quase foi atingida pelas garrafas lançadas na direção de Vítor Vasques, líder da Federação. Meia hora depois, João Pinto lá conseguiu ir à tribuna após uma “paragem” na zona da bancada de imprensa para fugir à fúria dos adeptos e trouxe a taça. Mas essa era bem mais do que uma mera taça, como os anos seguintes acabariam por mostrar.

“Houve uma série de de acontecimentos ao longo desse Campeonato, até as datas das marcações dos nossos jogos por causa das transmissões. Chegámos na época a seguir a essa a jogar pouco mais de 48 horas depois um jogo fundamental também para a Taça… Aquele era um momento em que o Sporting fazia o esforço para acontecer uma viragem, para se conseguir afirmar no futebol português de novo. Também por aí, era nessa fase um clube a abater e pelas arbitragens estava sempre em desvantagem. Toda aquela reação no final dos adeptos foi o soltar das frustrações e desilusões acumuladas que lamentei e muito. Para mim ainda era mais complicado porque, sendo profissional e fazendo tudo pelo Sporting, nunca deixei de ser sócio do FC Porto e tinha amigos do outro lado. Tinha esses dois sentimentos: a obrigação profissional, que era o principal, e a parte clubística”, salienta José Alberto Costa, que viu nessa final da Taça de Portugal o arranque portista para o penta.

Dois de Bobby Robson, dois de António Oliveira, um de Fernando Santos: FC Porto chegou a um inédito penta em 1999 (Allsport UK /Allsport)

“O FC Porto soube aproveitar da melhor forma essa vitória. Essa era e é uma das grandes qualidades de Pinto da Costa como presidente: agarrar em determinados jogos ou momentos para catapultar a equipa. Foi isso que aconteceu, tendo na altura Bobby Robson, que tinha vindo do Sporting, como treinador de uma equipa com uma estrutura forte”, destaca. “O facto de ter uma base muito sólida que se foi prolongando por vários anos acabou por ser o principal segredo para o penta do FC Porto: Vítor Baía, Aloísio, Secretário, Jorge Costa, Folha, Rui Barros, depois Drulovic, Capucho e Jardel… Além disso, sente-se muito a presença de um líder como Pinto da Costa, numa estrutura montada para que os jogadores sintam o peso da ambição e do querer do clube em ganhar títulos. Essa é a principal marca do presidente: a forma como quem entra aprende a ganhar e quer sempre ganhar”, frisa Nelson, que foi campeão em 1998/99 quando Fernando Santos se tornou o “Engenheiro do penta”.