A imagem internacional do Museu Coleção Berardo não foi afetada pelas notícias das últimas semanas sobre a tentativa de penhora da coleção de arte do empresário madeirense José Berardo por parte de três bancos portugueses. A opinião é do historiador e gestor cultural Jean-François Chougnet, que acompanhou a criação do museu no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, e foi o seu primeiro diretor, entre 2007 e 2011.
Questionado esta semana pelo Observador sobre a credibilidade internacional do museu, Chougnet destacou a “boa imagem” da instituição, resultado da “política de intercâmbio internacional, de coprodução [de exposições] e de empréstimo” de obras a outras instituições culturais. Um hipotético desmantelamento do museu seria, por isso, “uma grande perda”, afirmou.
Reservado na expressão de opiniões, Jean-François Chougnet disse não ter “qualquer legitimidade” para falar em público sobre a gestão financeira de Berardo ou do museu, mas afirmou-se “profundamente grato” pela “confiança constante” que o empresário lhe manifestou ao longo do seu mandato.
Desde há cinco anos, Chougnet preside à administração do Mucem – Museu das Civilizações de Europa e do Mediterrâneo, em Marselha, e em Lisboa é responsável pela direção artística do FUSO, festival internacional de videoarte. Aos 62 anos, tem ainda no currículo a administração do museu de arte moderna Centro Pompidou, em Paris (1985-1987), a assessoria no gabinete do ministro da Cultura francês Jack Lang (1988-1990) ou o comissariado do Ano do Brasil em França (2005).
Sobre o valor simbólico e artístico do acervo em causa, respondeu que, “a nível português”, as 862 obras fundadoras do museu são a “a única coleção significativa de artistas internacionais para os anos anteriores a 1968, ponto de partida de Serralves”, o principal museu de arte contemporânea do país, situado no Porto. “A nível internacional, tem fortes semelhanças com outras grandes coleções, particularmente na América do Norte ou Alemanha”.
Para o antigo diretor, a pintura “Oedipus and the Sphinx after Ingres”, de Francis Bacon, é a “obra mais importante da coleção do ponto de vista da história da arte”. Trata-se de um óleo sobre tela, datado de 1983 e com inspiração em obras da mesma temática executadas no século XIX pelo pintor francês Jean-Auguste Dominique Ingres (1780-1867). Foi comprado por Berardo em 1996 na leiloeira Sotheby’s, em Nova Iorque, informa o “site” o museu.
Ainda no que respeita às melhores peças da coleção, questão levantada pelo Observador nesta entrevista por “e-mail”, o antigo responsável acrescentou que não devem ser esquecidos “pelo menos dois conjuntos coerentes: surrealismo e pop art, incluido pop art inglesa e nouveau réalisme, o que é bastante invulgar” em coleções deste género.
“A resposta pertence às autoridades portuguesas”
Os cerca de 962 milhões de euros que José Berardo estará a dever à Caixa Geral de Depósitos, ao Novo Banco e ao BCP podem levar à penhora da coleção depositada no CCB, que terá sido dada como garantia por Berardo. Os três bancos avançaram a 20 de abril com um processo judicial que terá como finalidade a execução das obras de arte através dos “títulos de participação” que a banca detém na Associação Coleção Berardo (controlada pelo empresário e proprietária da coleção de arte que está no CCB).
A 10 de maio, em audição parlamentar, Berardo rejeitou que algum dia seja possível a penhora das obras. Dias depois, a ministra da Cultura, Graça Fonseca, garantiu que “o Governo tem ao dispor as necessárias e adequadas medidas legais” para que o acervo do empresário madeirense permaneça intacto e acessível aos portugueses e adiantou que o assunto está a ser tratado em conjunto com os ministérios das Finanças e da Justiça. Não se sabe de que medidas se trata. A crer na sugestão deixada há poucas semanas por Castro Mendes, antecessor de Graça Fonseca, a propriedade da coleção poderia ser repartida entre o Estado e os bancos credores.
Ainda que houvesse a expectativa de novidades logo a seguir às eleições para o Parlamento Europeu, segundo o “Diário de Notícias”, Graça Fonseca evitou o tema na última terça-feira durante uma audição na comissão parlamentar de Cultura. À saída, a ministra declarou ao jornal “Expresso” que a Assembleia da República “não é o local” próprio para explicar o futuro da Coleção Berardo e que aquele não era o momento.
O acervo é hoje composto por cerca de mil obras. Está em exibição no antigo Centro de Exposições do CCB desde 2006, ano em que o Estado assinou com José Berardo um protocolo de cedência, renovado em 2016. À época, a leiloeira Christie’s avaliou a coleção em 316 milhões de euros, valor pelo qual o Estado português poderia ter comprado as obras até 2016. Sabe-se que uma outra avaliação, pedida pelo próprio colecionador em 2009 e feita pela galeria americana Gary Nader, indicou 509,5 milhões de euros, mas não conta para efeitos de aquisição pública, porque os protocolos de 2006 e 2016 falam, sim, de uma avaliação a pedido do Estado e obrigatoriamente feita pelas leiloeiras Sotheby’s ou Christie’s.
Sobre quanto pode valer hoje a Coleção Berardo – tendo até em conta que a cifra de mil milhões foi há dias referida pelo crítico e historiador de arte Bernardo Pinto de Almeida –, Chougnet não quis pronunciar-se, argumentando que o código de ética do Conselho Internacional de Museus (ICOM) prevê que “os profissionais de museus devem abster-se de qualquer processo de avaliação”.
Independentemente de se desconhecer o preço atual, teria o Estado capacidade para comprar as obras? “A resposta pertence às autoridades portuguesas”, replicou. Isto pondo de parte alguns artigos dos protocolos de cedência, que obrigam a coleção, em caso de compra pública, a reverter para a Fundação Coleção Berardo e não para a posse directa do Estado. A Fundação de Arte Moderna e Contemporânea Coleção Berardo foi criada em agosto de 2006 para gerir o museu e nela o Estado é apenas um dos membros, exatamente com os mesmos poderes que o próprio empresário madeirense. “A história dos museus europeus é rica em compras de coleções particulares desde sempre”, explicou Chougnet, exemplificando com o British Museum, criado a partir da aquisição da Coleção Sloane.