Aviso à navegação: se tem medo de alturas, cuidado ao ler as próximas palavras. Tatiana-Mosio Bongonga é uma das poucas mulheres a fazer funambulismo a esta altitude: em Linhas Voadoras – espectáculo que este sábado, a partir das 19h30, decorre na Alameda D. Afonso  Henriques – está suspensa numa corda que começa nos 20 metros de altura e acaba nos 35, isto numa distância de 340 metros (a maior que já percorreu), que vai do centro da Alameda até à Fonte Luminosa. É portanto com bastantes vertigens que se começam a celebrar as aventuras dos santos populares, os manjericos, os arraiais, as sardinhas, aquele período (ainda mais frenético) da capital.

Tatiana cresceu na Normandia, numa pequena cidade no norte de França, com um pai músico, algo que a fez ter a certeza que queria fazer algo do género, uma arte. “O meu pai faz música para ele, eu queria fazer uma coisa que fosse para mim e para os outros”, afirma. Foi ao ver uma mulher, suspensa numa corda, passar de um prédio para o outro, a dez metros de altura que decidiu que precisava de experimentar aquela sensação: “Não era normal estar ali no chão e ela ali em cima. Havia uma pequena escola na minha terra e foi assim que comecei”. Tinha 8 anos.

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Sendo o funambulismo uma arte pouco disseminada, com poucas gordas nos jornais por comparação com outro tipo de manifestação artística, é normal que se pense que tem trinta mil segredos e manhas. Mas Tatiana fá-lo sempre parecer uma coisa comum, como as outras, algo que qualquer pessoa podia fazer. Só requer paciência e tempo:

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“Não há segredos nenhuns, é uma questão de me sentir preparada. Às vezes não é difícil lidar com a cabeça, há muitos pensamentos aqui dentro, é preciso tempo para atirar isso tudo fora, para trás das costas. E eu trabalho com um psicólogo, a quem posso ligar quando quiser, além disso trabalho com osteopata para trabalhar o corpo, portanto é o que digo: só preciso de tempo”, explica.

É claro que caiu muitas vezes, faz parte. E sim, há aquela questão, aquele detalhe: se a coisa correr mal, pode correr mesmo muito mal, pode até não ter remédio. Ora isso traduz-se em mais tempo e mais segurança, é a própria que admite que quando se tenta algo novo, uma altitude superior, um trajeto distinto, é preciso ir com equipamento de segurança, conhecer o vento e o material que se está a tocar e a dançar, e aí, sim, quando se sentir pronta, largar a segurança e avançar. Até porque, lá está, Tatiana, como tantos comuns mortais, adora a sua vida e não quer “que ela acabe”.

A entrevista decorreu no local do crime, em plena Alameda, onde o aparato técnico começa já a ganhar alguma envergadura. A sorte – ou o azar, se pensarmos no calor desmedido que se faz sentir na capital nestes dias – é que não é a primeira vez que Linhas Voadoras é apresentado publicamente, já aconteceu em Montmartre, em Paris, num espectáculo que deve ter sido de uma beleza invulgar.

Mas, como dizíamos, não é pera doce montar algo deste tamanho: “A instalação é muito grande, sim, são muitas pessoas, muitos técnicos, muito material, isso tem que começar cedo, claro. Por outro lado, para mim, é uma questão de preparação corporal e interior, pouco mais”.

A seu lado – bom, a seu lado em sentido figurado, claro, que lá em cima estará sozinha – terá três músicos da sua companhia Basinga (que co-fundou em 2014 com Jan Naets e Émilie Pécunia) e 20 música da Banda da Armada, que lhe vão dar música, e também impulso emocional, mexer-lhe nos sentidos. “Preciso que a música não seja muito rápida, mas antes uma música forte, pesada. E adoro ter vários instrumentos porque me permite seguir cada um individualmente, é algo muito bom de explorar com o corpo”, diz, adiantando ainda que gosta de eletrónica, música clássica, uma mistura de ambas, e também um pouco de rock e gospel.

Mas conta ainda com mais ajuda preciosa, 70 pessoas, a que chama de cavaletes, que seguram o fio que envolve a corda que percorre. Sem eles nada disto seria possível:

“Preciso de pessoas para suster a corda, portanto são 70 pessoas que têm um fio atrás das costas ou das pernas, e preciso disso porque a corda balança. Para nós é importante mostrar que isto é feito por pessoas e não por algo que está preso ao chão ou assim, de outra maneira vemos só uma pessoa a atravessar a corda e isso parece um super-herói ou assim, não é isso que nos interessa. E estou completamente conectado com eles, porque se eles se mexem um bocado eu sigo esse movimento lá em cima, até porque o vento é diferente lá, precisamos de estar em sintonia”.

Ao falar de Linhas Voadoras, volta a insistir na simplicidade do objeto. É algo muito natural, é através da música, do que vai sentido, que decide dançar ou fazer movimentos, mas também admite que “depende da ocasião”, de como se estiver a sentir, é sempre diferente.

E quando lhe perguntamos como é que se sente por ser mulher, uma das únicas, a fazer algo deste género, tão perigoso, belo e aliciante, depressa remata: “Eu nem sei se sou mulher, sou só humana, é muito importante para mim dizer isso. Não sou negra, não sou mulher, sou humana. Faço isto porque gosto, não é porque sou mulher, está muito na moda ser mulher agora, e sinto orgulho nisso, mas não penso esta arte dessa maneira”. Vemo-nos lá em cima. Ou, por outra, vemos Tatiana lá em cima.