Todos os anos faz uma corrida solidária, mas desta vez vai correr em causa própria. Duarte Barbosa é enfermeiro e planeia percorrer em julho os 350 quilómetros que separam o Hospital São João, no Porto, e a Assembleia da República, em Lisboa. O objetivo é confrontar o Governo com um conjunto de exigências.
Pelo caminho, o enfermeiro de 47 anos quer convencer milhares de profissionais do setor a assinar uma declaração de demissão se o executivo de António Costa não ceder às propostas do setor. “Levarei comigo toda a força de uma classe e milhares de assinaturas de um aviso de despedimento coletivo, com o prazo de dois meses”, afirmou o enfermeiro num anúncio que publicou no Facebook.
Entre 2 e 11 de julho, pretende passar por vários hospitais entre Porto e Lisboa, onde vai recolher assinaturas de profissionais que estão descontentes e que estejam dispostos a colocar a carreira à disposição a 11 de setembro. “Iremos dar ao Governo dois meses para dignificar a nossa profissão, atendendo a esse conjunto de exigências.”
Ao Observador diz que está consciente das pressões que vai receber com a mediatização do desafio. “Estou a passar por cima de sindicatos e a reunir milhares de enfermeiros por um objetivo.” A pouco mais de um mês do início da corrida, admite já ter recebido “avisos” para não avançar, mas diz que não quer recuar.
Duarte Barbosa conta com um grupo de apoiantes, responsáveis por redigir a declaração de intenções que os enfermeiros poderão subscrever, e onde vão constar as propostas que querem apresentar ao Governo. Ainda reservado nos pormenores, o profissional do Porto adianta apenas que estarão incluídos pontos como a redução da idade da reforma e a reavaliação da carreira. Como exemplo aponta o diploma recém-publicado no Diário da República que reconhece a categoria de enfermeiro especialista, mas que Duarte Barbosa considera insuficiente. “No fundo, continua tudo na mesma. Continua a ser apenas mais 50 euros sobre o salário-base”, afirma.
“Está nas mãos do Governo decidir: ou a dignificação de uma profissão já por demais ultrajada e esquecida ou a queda do Serviço Nacional de Saúde.”
Para Duarte Barbosa, um corredor experiente, o maior desafio não é fazer os 350 quilómetros. Tudo pode ficar em causa se não conseguir reunir os milhares de assinaturas que pretende. “Se no fim da corrida tiver 150 [assinaturas], não entrego. Os que subscreverem garantidamente apresentam a demissão a 11 de setembro.”
O enfermeiro do Porto quer ser um dos rostos de uma batalha travada há vários anos entre os profissionais de enfermagem e o Governo, mas que ganhou contornos mais extremos desde a chamada “greve cirúrgica”, que paralisou blocos operatórios de vários hospitais no final de 2018. Este ano ficou marcado por vários períodos de protesto dos enfermeiros, propostos por diferentes órgãos sindicais: em janeiro, uma segunda “greve cirúrgica” fazia adiar milhares de cirurgias e, em maio, a Federação Nacional dos Sindicatos dos Enfermeiros [FENSE] chegou a convocar uma greve de zelo, depois de ter acusado o Ministério da Saúde de falta de diálogo com os sindicatos e de não dar seguimento às reivindicações.
Entre altos e baixos nas negociações, as reivindicações eram sempre as mesmas. Os enfermeiros pediam uma reavaliação da idade da reforma para os 57 anos e 35 horas de trabalho, a criação de uma nova tabela salarial — com um aumento de 400 euros sobre os atuais 1201 euros líquidos da categoria-base e, principalmente, o reconhecimento da categoria de enfermeiro especialista.
A última proposta foi publicada em Diário da República na última segunda-feira, dia 27, mas não agradou aos sindicatos nem à Ordem dos Enfermeiros. “Continuamos a ser tratados como profissionais com valores salariais mais baixos”, lamentou Lúcia Leite, da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros [ASPE]. É desse descontentamento que Duarte Barbosa quer partir, em representação de um setor que descreve como insatisfeito e desvalorizado.
O enfermeiro do Porto recupera o tipo de protesto protagonizado por uma só pessoa, tal como fez Carlos Ramalho, presidente do Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (SINDEPOR), que em fevereiro iniciou uma greve de fome em frente ao Palácio de Belém. No caso de Duarte Barbosa, o estômago dá lugar aos pés. Quer levar consigo uma ameaça de demissão de milhares de enfermeiros. “Esta é a maior luta que eu alguma travei, contra uma ditadura camuflada e contra um país que teima em ignorar os enfermeiros”, diz.