“É favor colocar o telemóvel em modo teatro”.

Este é o primeiro alerta, antes que o pano desate a subir. Concluída a tarefa, vemo-nos numa espécie de quarteirão lisboeta, uma amostra de um bairro, uma praceta movimentada do centro da cidade. Está lá tudo o que o conhecemos: um sem abrigo, o seu saco-de-cama e a sua amizade com um rato; uma mulher de idade avançada que ocupa um banco com costuras; duas casas habitadas por duas velhotas que ainda podem pagar aquela renda e que estão costas-com-costas com um alojamento local onde estrangeiros vêm fazer despedidas de solteiro e brindes à noiva; e dois restaurantes – um deles naquela estética bem vintage de pseudo-casa-de-chá – no piso térreo. Eis o cenário vertical de “Histórias de LX”, o novo espectáculo do Teatro Meridional que se estreia esta quarta-feira no São Luiz Teatro Municipal, e que é mais um capítulo da programação especial da comemoração dos seus 125 anos de vida.

A ideia, começa por dizer Natália Luiza – encenadora e meia-parte, a par de Miguel Seabra, da direção artística do Meridional –, surgiu há coisa de três anos, quando tinham em mãos as sempre agradáveis candidaturas da DGArtes, à boleia da sua condição geográfica, não só de uma companhia lisboeta, mas ainda do seu estabelecimento, há 25 anos, na zona do Poço do Bispo, Marvila. “Estamos numa das zonas da cidade em que a transformação, gentrificação, é mais visível, está a um ritmo alucinante. De um momento para o outro, houve uma série de sinais que começaram a acontecer na relação das pessoas com a cidade e, à nossa volta, a impossibilidade de as pessoas encontrarem casa, e esta história de despolíticas que se desenvolvem e são da própria cidade e que está a deixar desprotegidos os seus habitantes, havia que falar da cidade”.

Pano para mangas, certo, estimado leitor? Ah, a Lisboa destes tempos tem tanto que se lhe diga. E é por isso – também a piscar o olho às 125 velas que o São Luiz acaba de apagar – que se contam 125 personagens num total de 1h25 minutos. O som da água é recorrente, como se tivéssemos colocado os nossos pés a demolhar na Ribeira das Naus, e com ele vem também a estridência dos elétricos, tão bem balançados com a música original de Rui Rebelo, longo colaborador do Teatro Meridional e de outras companhias.

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Mas o som, sim, falávamos do som. A melhor forma é dizer que é o som de Lisboa, o som do frenesim, o som das trotinetes, o som das panelas do restaurante gourmet, o som que nunca é límpido, a conversa da mesa do lado que é impossível de descortinar por completo. E isso significa, muitas vezes, que o texto assume quase um plano secundário, é mais um elétrico em forma de palavras, um ruído ora poético, ora poluente.

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“Sim, é um facto, as ações, todas elas, percebem-se sem que tenhamos que ouvir os discursos totalmente, como alguém que passa por nós no metro e só ouvimos uma palavra, ressoa qualquer coisa, ainda que existam frases e trechos que rasgam essa paisagem, que quisemos que assim fosse”, explica Natália.

Refere-se, por exemplo, àquele momento em que uma pessoa com trajes de trabalho algo rígidos – de auscultadores nos ouvidos e telemóvel na mão – embate numa outra que não está em trânsito e que por isso mesmo se sente insultada e com vontade de a mandar para determinados sítios. Ou quando estrangeiros de mochila às costas irritam polícias. Ou quando estacionam bicicletas em esplanadas e lhes passam multas. Ou quando, uma mulher do Norte, Maria José Povo, nos vem dar uma lição de sabedoria popular: mandar políticos para os tais sítios.

“Histórias de LX” é Lisboa num palco. Aquele sentimento de que ninguém está a olhar para lado nenhum, que ninguém está a apreciar – a não ser do visor do seu telefone. São vislumbres, desencontros, vendas de imóveis, uma mera passagem de um transeunte. “Quisemos falar sobre a cidade. E isso através da lógica da banda-desenhada, às vezes uma travessia num palco de uma personagem é como que uma tira, é como um cartoon. E encontrar personagens que tivessem que ver com a memória, que pudéssemos encontrar na rua, mas que tivessem também que ver com esta chegada, este desconforto em que começamos a sentir em Lisboa e no Porto. É terrível, quando se vem trabalhar para o centro, oiço as pessoas sempre a dizer ‘vamos para um sítio calmo’, acho até que os turistas já se começam a dar mal uns com os outros”, enquadra a encenadora.

É capaz de ser isso, é. Como se algumas conversas fossem balões de banda-desenhada em letra microscópica, como se os tróleis e a falta de dados móveis não tramassem isto tudo, mais os putos, já de manhã, ainda ébrios. E há sempre a ideia daqueles que são atirados para um canto, substituídos por outros — a Dona Rosa a receber a visita do senhorio, estão a ver?

Se há coisa muito óbvia nesta nova criação do Meridional é essa certeza, o curto espaço para diferentes interpretações. É o que é, é assim que se quer que seja: “Apeteceu-me falar da cidade com um filtro teatral, mas que ao mesmo tempo não tivesse qualquer tipo de ambiguidade, isto é, as coisas que lá estão – e contrariamente àquela coisa que hoje a arte tem muito, que é ‘eu vou fazer qualquer coisa, mas pode querer dizer muitas coisas para o espectador’ – são as coisas que queríamos dizer, há uma limpeza na comunicação, uma objetividade, não tem acopladas três, quatro, dez possibilidades. Eu quero dizer isto. Nós quisemos dizer isto ao falar sobre a cidade”, afirma Natália Luiza.

Se há coisa que salta à vista por aqui é a nova – bom, talvez já não seja bem nova, a recente, vá – vida da restauração. As receitas milionárias, o caviar que uma azeitona pode ser, essa evolução gastronómica de Lisboa, o céu estrelado a Michelin, que é um reflexo tão nítido da malfadada gentrificação:

“Queríamos ter a cozinha presente, as nossas Estrelas Michelin, que acho bem que sejam, atenção, mas este segmento de pessoas visíveis que têm um peso que um escritor não tem, que um artista não tem, há qualquer coisa que está virada do avesso, um blogger que diz umas enormidades e algumas graves, tem uma visibilidade… O circuito dos restaurantes acaba por ser sintomático do período que estamos a viver nesta cidade, o que se mostra, as pessoas que se convidam”.

A certa altura, há um grupo de Fernandos Pessoa que são corridos de cena, como que a dizer “já-chega-disto”, já chega de literatura – sobretudo se o temos ali tão bem sentado n’A Brasileira para umas fotografias à maneira. E “Histórias de LX” não é seguramente um retrato de Marvila, é algo que está por toda a cidade: “Neste momento não é Marvila, as lógicas deste espectáculo estão por toda a parte. Há qualquer coisa que não está pacificada, há qualquer coisa que não nos recebe bem, não é em vão que isto está marcado: os Pessoas têm que sair para dar ao lugar aos espanhóis. Nós não somos bem tratados em qualquer restaurante porque se espera outro segmento de público. Eu percebo, atenção, há um lado de rentabilidade das coisas que não se compraz com o tempo dos velhos, mas Lisboa é uma cidade de velhos, gostávamos que tratassem bem as nossas pessoas”, conclui.