[ATENÇÃO: este texto tem SPOILERS sobre a quinta temporada de “Black Mirror”, que já está disponível na Netflix. Se não quer saber mais, não leia]

Começámos a ver a quinta temporada de “Black Mirror” pelo último episódio. Erro crasso para quem tem um ligeiro distúrbio obsessivo-compulsivo (eu), é fã de Charlie Brooker (eu) e lida mal com a ansiedade (eu) — mas um erro perfeitamente desculpável pela falta bizarra de horas que o dia tem. Mais três horas naquela quarta-feira e tínhamos chegado a Londres com “Striking Vipers” e “Smithereens” no papo. Tínhamos, mas não chegámos. E quando nos sentámos para ver “Rachel, Jack and Ashley, Too” parecíamos uma criança gulosa a olhar para uma montra de gelados em dia de verão, que é, no fundo, o que somos. Tudo em nós salivava.

Uma hora depois, quando as luzes se acenderam, engolimos em seco e em silêncio culpámos a força e o poder do capital, a cultura de massas, a pressão da concorrência, e claro, “A Guerra dos Tronos” pelo desaire em que nos encontrávamos. Nunca culpámos Brooker — ainda que o regresso a casa tenha sido feito em modo órfão abandonado e descrente neste mundo e no outro, com consolos que envolveram clichés como “o que é bom acaba depressa”, “nada dura para sempre” e outros provérbios que tais, para não nos sentirmos tão deprimidos.

[o trailer de “Striking Vipers”, episódio realizador por Owen Harris:]

A verdade é esta: não gostámos do episódio de “Black Mirror” em que entra a Miley Cyrus. Não é por ela, que fez um ótimo trabalho a imitar-se a si própria, nem pelas pequenas Rachel (Angourie Rice) e Jack (Madison Davenport), a quem tantas vezes quisemos dar um abraço apertado e dizer-lhes que dali a 15 anos tudo passa, nem pelo trabalho incrível de engenharia e artes visuais que tornaram a boneca Ashley Too assustadoramente real e fofa — ao ponto de querermos comprar uma, nem que seja em porta-chaves.

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Foi mesmo pela distância a que nos coloca do argumento. Nada ali soa àquela angústia existencialista que nos habituámos a sentir no final de cada episódio da série. Nada ali nos deixou sem dormir. Nada ali nos fez querer ligar à mãe, ao pai, ao namorado, à namorada a dizer que “agora é que é, é desta que viro a vida do avesso”. Nada. E isto escrito assim parece um pouco masoquista (e é), mas quem vê “Black Mirror” não quer ser entretido, desculpem. Para isso tem outras coisas. Outras séries, outros sucessos de bilheteira.

Quem vê “Black Mirror” quer gelar um pouco, saltar para dentro da televisão, atirar com o telefone à parede, testar os limites dos seus comportamentos mais paranoicos e julgar-se às escondidas por achar que seria incrível ter tudo o que também é tenebroso. Nada disso acontece em “Rachel, Jack and Ashley, Too”. É um bom episódio de ficção (quase científica), uma hora de entretenimento bem feita, mas demasiado distante e esforçado, sem nos deixar a pensar ou a ponderar mudar absolutamente nada nas nossas vidas. E é por isso que nos sentimos abandonados quando chegamos casa. Trocaram-nos por uma audiência mais jovem, mais popular, menos angustiada. E está tudo bem.

Estávamos absolutamente errados.

[o trailer de “Smithereens”, episódio realizador por James Hawes:]

Foram precisos alguns dias para pegarmos em “Striking Vipers” e “Smitherens” e darmos-lhes a atenção que mereciam e que, graças a um impulso precipitado, estávamos prestes a descurar. Não o fizemos e obrigada insónias por existirem. “Smitherens”, o segundo episódio desta temporada, é o “Black Mirror” que sabíamos que merecíamos. Não é um “San Junipero”, porque não nos faz sonhar, nem um “Black Museum” porque não é assim tão retorcido, é uma história simples sobre solidão, culpa e sofrimento — emoções que ironicamente de simples não têm nada — mas que se evidenciam no mundo de redes sociais em que vivemos. Um argumento tão simples que não precisava de nada mais além da fotografia escolhida a rigor, que funciona como pano de fundo a um incrível Andrew Scott, a âncora que faz com que não desviemos o olhar do ecrã nem por um segundo. A interpretação do ator irlandês que nos habituámos a ver em “Sherlock” ou em “Fleabag” leva-nos a olhar para os braços, perto do fim, e percebermos que estamos com pele de galinha numa noite em que os termómetros contam mais de 30 graus em Lisboa.

E se não é desta que largamos o telefone de vez, então está perto. É amanhã. E dizemos baixinho que vamos mudar de hábitos, desligar as apps, que também nós vamos para um retiro de silêncio ou fazer um detox tecnológico. O murro no estômago pelo qual esperávamos de início chega-nos sem aviso no segundo episódio e é por isso que o erro crasso de termos começado pelo fim foi, na verdade, o melhor que podíamos ter feito. Abençoados erros.

[o trailer de “Rachel, Jack and Ashley too”, episódio realizador por Anne Sewitsky:]

Não chegamos a “Smithereens” sem passar por “Striking Vipers” e questionarmos o que é o amor, o que é o sexo, o que é o desejo, o que é a traição, o que é a fidelidade, o que é o casamento, o que é a paixão, o que é a amizade, o que é a família e quais são os limites que traçamos para cada uma destas emoções e escolhas. Parecem demasiadas questões para um episódio só? Não são. Não são, porque num mundo virtual em que tudo é possível, onde não há fronteiras nem testemunhas nem códigos morais ou éticos, qualquer um pode fugir da vida que escolheu para testar todas as outras que não tem. É o episódio “San Junipero” (sem a força de “San Junipero”) da quinta temporada, é Charlie Brooker a ser Charlie Brooker, o ex-jornalista de videojogos que há 8 anos ousou estrear uma série com um episódio em que um primeiro-ministro britânico tinha relações sexuais com um porco em direto. É “Black Mirror” em versão madura, com filhos, alguns cabelos brancos e uma valente de uma crise de meia idade. E está tudo bem. Neste caso, acreditem: está mesmo tudo bem. Sem margem para erro.

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