Das silhuetas cat eye às lentes espaciais, no que a óculos de sol diz respeito, este é um ano eclético. Nas passerelles, nos editoriais de moda, no Instagram e nas prateleiras das lojas, não há forma, década ou acabamento que não tenha conseguido reclamar a sua quota-parte no anuário de tendências. Na realidade, falamos de uma miscelânea de referências que percorre imagens cristalizadas no tempo — das divas que marcaram os anos dourados de Hollywood, aos ângulos redondos, sinónimo de peace and love, que se popularizaram nos anos 1960 e que, na década seguinte, redefiniram todas as noções de escala deste acessório de moda em relação ao rosto; da androgenia de Grace Jones ao minimalismo utópico de Matrix.

A moda, já se sabe, é este sistema de reciclagem e reinvenção. É por isso que encontramos tantas semelhanças entre uma dupla de Hadis de 2018 e Brad Pitt de mão dada com Gwyneth Paltrow em plena década de 90; entre um desfile da Gucci, com uma semana, e a louca coleção de óculos de Elton John, lá atrás, nos anos 1970. Parece que está a valer tudo, menos inventar algo novo. Será que é sequer possível?

Desfile de Elie Saab, coleção primavera-verão 2019 © Pascal Le Segretain/Getty Images

Óculos de sol: uma história de esquimós, imperadores e de química moderna

Uma dos primeiros objetos a apresentar semelhanças com aquele que hoje conhecemos como óculos de sol foram as peças usadas por povos esquimós, na região do ártico, para proteger os olhos da intensidade dos raios solares, quando refletidos na superfície branca da neve. Tradicionalmente feitas a partir de troncos trazidos pelo mar, em osso, com presas de morsa ou com hastes de rena, sempre foram completamente opacas, apenas com duas ou com uma única ranhura horizontal para permitir o mínimo de visibilidade. Crê-se que estes objetos começaram a ser construídos algures durante o século I a.C..

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Em Roma, reza a história que o imperador Nero assistia às lutas de gladiadores através de smaragdus polidas. O palavrão é latim, claro está, e acabou por evoluir para o português esmeralda. Uns séculos mais tarde, na China eram os juízes que usavam lentes planas em quartzo baço enquanto interrogavam as testemunhas em tribunal. Ao cobrirem a zona mais expressiva do rosto, o intuito era garantir a imparcialidade no julgamento.

Peggy Guggenheim e os seus óculos Butterfly © Getty Images

Em meados do século XVIII, um senhor inglês chamado James Ayscough desenvolveu lentes em tons de azul e verde. O objetivo não era proteger os olhos do sol, mas sim resolver problemas de visão aos seus pacientes. Entre as primeiras representações deste objeto em pleno uso encontra-se a do químico Antoine Lavoisier, em 1772. Com tons entre o bege e o castanho, as lentes coloridas regressariam nos século XIX e no início do século XX, prescritas a doentes de Sífilis, já que a fotossensibilidade era um dos sintomas do doença. Só no primeiro quartel do século XX é que apareceriam as primeiras lentes capazes de bloquear os raios ultravioleta (1913). O seu inventor foi o químico e físico William Crookes. Anos depois, já na década de 1920, os primeiros óculos de sol começaram a ser usados por estrelas de cinema.

Das divas de Hollywood ao camisola amarela: 70 anos a ver o mundo a cores

Resumir as tendências de óculos de sol para este verão é mais ou menos como fazer as malas para umas longas férias — não dá para selecionar, por isso, leva-se praticamente tudo atrás. Nas passerelles, vimos contrastes. Enquanto marcas como a Gucci, a Miu Miu e a Elie Saab ironizaram as formas já expandidas dos clássicos dos anos 70 — em algumas peças, com laivos de futurismo –, Stella McCartney e Vetements, entre outras, integram um pelotão de lentes amplas e espelhadas, ao estilo ciclista. Há ainda quem continue a perpetuar os pequenos óculos retangulares, popularizados na última década do século XX. Off-White e Moschino competem nesta última liga.

George Harrison durante as rodagens do filme Magical Mystery Tour, transmitido na BBC em 1967 © Getty Images

Nas lojas por onde passamos todos os dias, não se dispensam os básicos, a começar nos formatos cat eye, dos mais subtis aos mais pontiagudos. Os grandes ícones de estilo de meados do século ficariam agradavelmente surpreendidos com a vitalidade  deste glamour, 70 anos depois. Falamos de Marilyn Monroe, Audrey Hepburn, da colecionadora de arte Peggy Guggenheim, dona dos icónicos Butterfly e da rainha da excentricidade “ocular”, Jayne Mansfield. O mesmo se poderá dizer da silhueta dos Aviator, desenhados em 1937 pela norte-americana Ray-Ban, os clássicos masculinos à imagem e semelhança de James Dean e claro, mais uma herança dos anos 1990, uma paleta de lentes sem tons proibidos.

Nos anos 1960, os óculos cresceram e arredondaram-se. Com armações massudas e formatos que variavam entre retângulos, lentes ovais e círculos perfeitos, é como se cada par fosse uma reprodução inanimada dos olhos de Twiggy, o rosto britânico que marcou a década. No Reino Unido, precisamente, os Beatles incendiavam multidões. Já não era só a música, o quarteto de Liverpool era um pacote completo, com estilo e atitude capazes de contagiar um país, um continente inteiro e até de galgar o oceano. Os óculos faziam parte do cenário — os pequenos e redondos de John Lennon e os corações de George Harrison marcaram a década.

Quando Brad Pitt e Gwyneth Paltrow eram um casal, em 1996 © KIM KULISH/AFP/Getty Images

A tendência seguinte foi, no mínimo, louca. Os óculos cresceram — redondos ou então na forma de grandes quadrados entrepostos entre os olhos humanos e o mundo. As lentes ficaram mais claras e algumas não passavam de meros filtros sépia, ao passo que as armações finas surgiam em silhuetas trabalhadas, da ponte às ponteiras. Quem reconhece algumas destas características aos exemplares que tem em casa só precisa de agradecer aos anos 1970. Sim, porque os anos 1980, ressalvando as exceções mais gráficas, foram bem mais contidos. Além disso, que outra coisa se poderia esperar de uma década que praticamente arrancou com “Blade Runner”? Uma pitada de futurismo, pois claro. Num programa de televisão australiano, em 1985, Grace Jones optou sabiamente por nunca tirar os óculos escuros. Talvez a tenham ajudado a lidar com as perguntas idiotas do entrevistador. É essa a imagem que serve de capa à tendência — óculos com esquadria perfeita, a linha superior reta e que não permitem sequer desvendar o olhar.

Desfile de Stella McCartney, coleção primavera-verão 2019 Pascal Le Segretain/Getty Images

Já o filme “Negócio Arriscado”, o primeiro grande sucesso de Tom Cruise no cinema, de 1983, interferiu mais na indústria dos óculos de sol do que se pensa. No arranque da década, a Ray-Ban estava em queda, após um rombo nas vendas no qual a moda das armações e lentes XL teve o seu quinhão. Os Wayfarer que Cruise usou no filme operaram um verdadeiro milagre. As vendas dispararam, numa altura em que a marca pensava em descontinuar o modelo, criado em 1956. Três anos depois, a Ray-Ban voltou a contar com o ator como instrumento de marketing. “Em Top Gun – Ases Indomáveis”, Tom Cruise completa o círculo ao usar os Aviator.

Quanto aos anos 1990, imagens não faltam — Brad Pitt e Gwyneth Paltrow, Drew Barrymore, Kurt Cobain e, já na reta final, sem qualquer misericórdia, Justin Timberlake e os seus comparsas NSYNC. A visão a cores ainda transitou de milénio, bem como os incompreendidos Arnette. Os anos 2000 não foram brandos. As lentes voltaram a crescer, ora espelhadas, ora em dégradé, como Paris Hilton, entre outros ícones da época poderão facilmente atestar. Numa era de revivalismos acelerados, em que até a década passada já desperta nostalgia, nenhuma referência de estilo ou tendência está, na verdade, demasiado distante.