O queijo para aconchegar a massa à bolonhesa, quente, vinha enrolado em papel-prata. Deu-o Seu Jorge para a mão do assistente, que o ralou firmemente. “Eu não consigo comer antes dos concertos. Isso de estar a fazer a digestão e de cantar ao mesmo tempo não combina”.

Senta-se depois, numa poltrona amarela torrada, a combinar com o fato. Não sabemos se foi de propósito. Acabado de encontrar um Coliseu do Porto à pinha (na noite de quarta-feira), Seu Jorge admite: “O sítio que eu mais adoro em Portugal é Cascais”. Não segue para longe. O Estoril espera-o agora em dois concertos, dias 21 e 22 de junho, sexta e sábado, com clássicos que se eternizaram e cujas letras cabem com destreza na ponta da língua das bocas tugas. “Burguesinha” canta-se alto e bom som. Para “São Gonça” e “Felicidade” já se faz silêncio na sala.

Não foi desta que Jorge Mário da Silva trouxe disco novo, mas não falta tudo. “Ainda há uma coisita ou outra para terminar, mas está gravado, pré-produzido e editado. Deve sair em meados de outubro”, garante, sem certezas, ao Observador. No entanto, é um disco de intérprete, com músicas cantadas em português e em inglês e apenas uma canção autoral, que mete dedinho de Arnaldo Antunes e Marisa Monte. O disco conta ainda com arranjos para orquestra do americano Miguel Atwoon-Ferguson.

“É um disco mais clássico, na temperatura do espetáculo de hoje, em fui buscar compositores de que gosto, como o Milton [Nascimento], o Lô Borges, o Arthur Velocai e o Cezinha [César] Mendes.”

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O nome The other side, inicialmente provisório, deve manter-se. “A ideia é essa”, conta, risonho, satisfeito pela “possibilidade de poder mostrar o outro lado”. O resultado tem sido atrasado pela agenda do artista em projetos cinematográficos.

Esse seu outro lado também não é de agora. Seu Jorge conta já com mais longas metragens do que discos no currículo. 2019 será palco para algumas mais.

Lancei dois filmes este ano: o “Mariguella” e o “Abe”. O “Abe” estreou-se no Festival de Sundance; um filme do Fernando Grostein [Andrade], com o Noah Schnapp, o menino da série “Stranger Things”. No “Mariguella”, o primeiro filme de Wagner Moura, que se estreou no Festival de Berlim, estou a fazer o papel de [Carlos] Mariguella. Depois disso, também fiz uma série chamada “Irmandade”, para a Netflix, que, acreditamos, vai ser lançada em outubro. Acabei de rodar um outro filme, o primeiro de Lázaro Ramos, “Medida Provisória”. Saindo daqui, vou fazer o “Trópico”, longa metragem da Giada [Colagrande], a esposa do grande [Willem] Dafoe, com ele a atuar.

Apesar de a carreira na representação já vir dos 21 anos e do tempo em que foi “levado naquela onda” do TUERJ — Teatro da Universidade do Estado de Rio de Janeiro –, muito do público português desconhece o seu trabalho como ator. “Se o público português me conhece mais como cantor, sofre dos mesmos defeitos que o público brasileiro”, assume, atirando uma justificação: “O facto de eu não fazer novelas talvez tenha não me aproximado tanto do público”.

Seu Jorge atuou no Porto, no dia 19. Sexta e sábado, dias 21 e 22, vai estar ao vivo no Casino Estoril

O projeto de teatro, construído por 23 profissionais que iam buscar pessoas de fora a experimentar aquela arte cénica, levou-o também a compor as primeiras músicas. Um ano depois, estava a fazer figuração nos filmes do Mika Kaurismaki “um diretor finlandês muito prestigiado aqui na Europa”. Depois, fundou aquele que viria a ser o projeto a lançá-lo na música, “Farova Carioca”. Nessa altura, a imagem de chegar aos palcos era “um devaneio” e “surgia sempre”.

Na imaginação, sempre desfrutei de poder estar a cantar para as pessoas, poder estar no palco, e até, quem sabe, poder atuar. Mas nunca pensei que a música e que o cinema me escolhessem.

Sobre os filmes, diz que servem de contrabalanço ao mediatismo que ganha na música, para “não me lambuzar de importância”:

O mais importante é o filme. Se o filme é incrível, o [Steven] Spielberg é incrível. Se o filme não é, eu não sou também. Aqui na música todos trabalham para convergir em mim.

É por isso que denota aprendizagens únicas vindas da oportunidade de fazer cinema. Desde aprender a fazer “scuba diving” ao combate corpo a corpo, para o “Tropa de Elite”. Agora com o Mariguella, o famoso guerrilheiro baiano morto numa emboscada policial no fim dos anos 60, deparou-se com “um trabalho muito intenso” de preparação de um personagem “tão complexo na história brasileira e com uma história tão pouco difundida”.

O ator, compositor e multi-instrumentista vai dividindo o tempo entre os Estados Unidos e o Brasil. Saído dos concertos em Portugal, volta para o inverno brasileiro. Hesita um pouco em comentar o estados das coisas na política, mas admite que as transformações implementadas por um sistema “com valores liberais na maneira de pensar a economia e conservadores nos costumes” vieram para todos. Os artistas viram o investimento reduzir-se em muitas instituições e “vão ter de se adaptar”, como todos os brasileiros.

Com 13 milhões de desempregados, com mais de 60 milhões de pessoas com dificuldade e ter dinheiro para as contas, o Brasil está a atravessar um período complicado. Tudo isso faz com que não consigamos ver uma luz lá no fundo. Ela ainda não apareceu.