É difícil imaginar Sporting e Benfica a partilhar o mesmo estádio. O mesmo se aplica a Atl. Madrid e Real Madrid em Espanha, a Chelsea e Arsenal em Londres e até a Flamengo e Fluminense no Rio de Janeiro. As mais antigas rivalidades do mundo do futebol, títulos e historial à parte, prendem-se com a coexistência numa mesma cidade — o que quer dizer, à partida, que a coexistência num mesmo estádio é quase impossível. Em Itália e em Milão, porém, a história sempre foi diferente. AC Milan e Inter Milão, os dois principais clubes da cidade do norte italiano, partilham o mesmo estádio desde 1947 e são caso praticamente único em todo o mundo. O histórico San Siro, com capacidade para 80 mil pessoas, tornou-se um exemplo de fair play e rivalidade saudável: esta segunda-feira, os representantes dos dois clubes anunciaram que o estádio vai ser demolido.

“Vamos fazer um novo San Siro juntos, perto do local onde está situado o estádio atualmente. O estádio será demolido e serão construídos prédios nesse local”, revelou Paolo Scaroni, presidente do AC Milan, acompanhado pelo diretor executivo do Inter, Alessandro Antonello. A decisão é tomada depois de vários anos de avanços e recuos nas negociações entre os dois clubes, já que o AC Milan defendeu a construção de um novo estádio desde a primeira hora e o Inter era a favor da renovação e remodelação do atual San Siro. O conjunto atualmente orientado por Antonio Conte acabou por ceder quando percebeu que as obras no estádio — que iriam levar vários anos — acabariam por reduzir o número de lugares disponíveis, logo, encurtar a massa adepta presente em todos os jogos. Para já, não existem datas oficiais, mas a Gazzetta dello Sport garante que o novo estádio deve estar concluído no início da temporada 2022/23.

AC Milan e Inter Milão partilham o mesmo estádio desde 1947, há mais de 70 anos

San Siro para a maioria dos adeptos, a verdade é que o nome oficial do estádio de Milão é Estádio Giuseppe Meazza, em homenagem ao jogador que representou os dois clubes nas décadas de 30 e 40. Ainda assim, e apesar de ter jogado por ambos, Meazza representou o Inter ao longo de 14 anos separados por dois períodos e só vestiu a camisola do AC Milan durante duas temporadas — o facto de ser uma figura muito mais importante no imaginário nerazzurri do que no rossoneri motivou que os adeptos do Inter se refiram ao estádio enquanto Giuseppe Meazza, ao passo que os apoiantes do AC Milan continuem a tratar o recinto enquanto San Siro, o nome do distrito em que está localizado.

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Além dos dois jogos por temporada que AC Milan e Inter têm de disputar um contra o outro em San Siro, a contar para a Liga italiana, o destino ditou que as duas equipas se encontrassem em duas ocasiões em eliminatórias da Liga dos Campeões: e com apenas dois anos de diferença. Depois de um primeiro encontro nas meias-finais da Champions em 2002-03 que terminou com a vitória do AC Milan (que acabou por se sagrar campeão europeu ao vencer a Juventus na final), os dois clubes reuniram-se novamente em 2004/05, desta feita ainda nos quartos de final da liga milionária. A história da segunda mão dessa eliminatória, por incrível que pareça, desfez o mito de fair play e rivalidade saudável que pairava em San Siro.

Depois de o AC Milan vencer a primeira mão por 2-0, com um golo de Stam e outro de Shevchenko, era tempo de jogar a segunda mão e decidir quem passava às meias-finais da Liga dos Campeões. A 12 de abril de 2005, há 14 anos, o AC Milan era treinado por Carlo Ancelotti e tinha Pirlo, Maldini, Kaká e ainda Rui Costa; do outro lado, Roberto Mancini comandava Zanetti, Verón, Cambiasso e Adriano. Depois de marcar na primeira mão, Shevchenko inaugurou o marcador da segunda partida logo à meia-hora e colocou os rossoneri com pé e meio nas meias-finais. Aos 72 minutos, quando ainda se mantinha a vantagem mínima e depois de o Inter ver um golo anulado a Cambiasso, os adeptos nerazzurri lançaram tochas para o relvado e atingiram Dida, o guarda-redes brasileiro do AC Milan.

O árbitro alemão Markus Merk interrompeu a partida de forma provisória e ordenou a recolha dos jogadores aos balneários durante dez minutos. Um minuto depois do recomeço do jogo, os adeptos do Inter voltaram a encher a grande área de Dida de tochas e a equipa de arbitragem acabou por decidir terminar o encontro de forma definitiva. A UEFA atribuiu uma vitória por 3-0 ao AC Milan, eliminando o Inter Milão e ainda condenando o clube a quatro jogos à porta fechada na Liga dos Campeões da temporada seguinte e a uma multa de 270 mil euros, naquele que foi o castigo mais pesado da história do organismo que regula o futebol a nível europeu. A equipa de Rui Costa eliminou o PSV nas meias-finais mas perdeu nas grandes penalidades da final com o Liverpool e falhou aquela que seria a segunda conquista europeia em três anos.

O San Siro foi sempre um exemplo de fair play e da rivalidade vivida de forma saudável por dois clubes da mesma cidade mas em abril de 2005 foi palco de uma das noites mais tristes da história de AC Milan e Inter Milão. Menos de um quilómetro ao lado, vai nascer o novo San Siro que é também o novo Giuseppe Meazza — e que não terá na memória a página negra de há 14 anos.