Crianças ao poder. Adultos fora de pé. Andy Field sempre gostou desta premissa. Em 2015, no Natural History Museum, em Londres, criou uma performance para famílias onde os pais eram vendados e guiados pelos filhos numa exposição através da coleção de animais dentro de jarros de vidro possuídos pelo museu. No final, os adultos eram entrevistados para perceber qual o seu nível de atenção, perante um cenário bastante ruidoso. “Lookout” (no terraço do Centro Europeu Jean Monet, em Lisboa, sábado e domingo) vem daí, dessa zona, dessa ideia de troca de lugares na sociedade: “Diria que sim, que foi a fonte para este projeto. Mas sempre tive um fascínio por cidades, espaços urbanos, e portanto, no fundo que aconteceu foi substituir os objetos expostos no museu pela vista de toda a cidade, como tema para a conversa entre criança e adulto. Ainda que a chave, o objetivo, continue a ser renegociar levemente a relação estabelecida normalmente entre criança e adulto”, começa por enquadrar numa entrevista dada no Cinema São Jorge.

Agora é tempo de deixar o espaço museológico e rumar à altitude – no caso de Lisboa ao Centro Europeu Jean Monet – para melhor vislumbrar Lisboa e as suas curvas. A performance é bastante simples: os espectadores chegam ao terraço, é-lhes entregue uma pequena coluna e sentam-se de frente para a cidade. Carregam no play e ouvem uma criança de dez anos dizer que tem quarenta, a mesma que se apressa a descrever a vista, que está ligeiramente alterada, mas não assim tanto, afinal, só passaram 30 anos. Durante este processo, a criança junta-se ao adulto, apresentam-se e iniciam a conversa. Em seguida, os miúdos clicam noutro ficheiro de som e o tempo avançou mais 30 anos, a paisagem mudou significativamente porque falamos de um total de 60 anos de distância, é algo bem mais assustador, e a criança, por fim, faz uma série de perguntas ao adulto. A criança abandona o seu lugar e há um terceiro som, onde se imagina Lisboa daqui a 90 anos, desta vez numa colagem das várias vozes das crianças com quem Andy Field trabalhou – em Portugal são 16, do Colégio de Nossa Senhora da Conceição, da Casa Pia de Lisboa.

“Lookout” é um espaço onde crianças de 9/10 anos podem cumprir um papel ativo, ter uma importância que de outra forma não seria possível e é talvez por isso que Andy Field tem corrido o mundo a trabalhar com escolas e miúdos, para depois atirar com esta informação toda, crua, na cara dos adultos. Não são poucas as cidades por onde já passou: Londres, Cambridge, Manchester, Bristol, Cairo, São Paulo, Xangai, Pequim, Vancouver, Oakland, Riga, Salzburgo, Madrid e, agora, Lisboa. E quanto a isso, é o próprio Andy que admite que Lisboa “é uma cidade perfeita para fazer este projeto, está cheia de coisas espectaculares para serem vistas, é muito mais difícil quando se está numa cidade plana, sem grandes pontos de interesses”. E ainda acrescenta: “Estamos atualmente a trabalhar numa versão numa cidade neozelandesa que não tem nada, eles estão a construir um parque de estacionamento que esperemos que acabem entretanto, para o podermos usar”.

Quem agora vai usar somos nós. Usar, com autorização, sempre, uma frase que Andy Field escreveu no programa de apoio à performance:

“Estas crianças são as criadoras deste espectáculo porque elas são especialistas a imaginar o futuro de uma maneira que eu já não sou capaz”.

E sim, claro, está relacionado com uma falta de noção de alguns assuntos, mas não isto não fica resumido na ingenuidade, é um olhar pragmático da vida, do futuro, livre do conceito de progresso que tanto nos obrigam a consumir: “Por uma série de razões, o futuro, para as crianças, ainda é um sítio de possibilidades infinitas. Talvez possa estar relacionado com ingenuidade ou simplesmente não saber tanto como nós sabemos, mas também porque – e tendo por base essa visão de possibilidades infinitas – as crianças são capazes de levar uma ideia muito mais longe, até à conclusão, demolir qualquer coisa e construir algo completamente diferente e novo por cima disso. É esta coisa de criar, destruir, reconstruir, que me parece uma parte essencial da infância, fazes grandes desenhos e mandas fora, constróis edifícios complexos de lego e depois mandas abaixo. Assim que vamos envelhecendo vão-nos dizendo que esta é uma forma muito pouco eficaz de viver, temos que construir por cima do que temos, a ideia de progresso, no fundo, como uma carreira, por exemplo”, explica.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em “Lookout”, as projeções futuristas das cidades são feitas até 90 anos

Em cada cidade onde apresenta uma nova versão, Andy Field e a sua equipa têm duas semanas para trabalhar com os jovens. Ou seja, o tempo voa, mas considera que é sempre bem recebido, porque funciona como uma escola, mas é uma escola muito mais fixe, onde podem ser alguém naquele preciso momento, dizer o que pensam, estar com alguém que não é português, uma fuga da rotina dos sumários e da aprendizagem tradicional. A primeira parte deste tempo é ocupada a preparar os ficheiros de áudio que serão grande parte do espectáculo. A segunda é mais dedicada à performance em si, que é também a sua parte preferida.

Mas mesmo dentro da primeira parte, há três blocos distintos, ou seja, três temáticas diferentes a que correspondem os três ficheiros de áudio, trabalhados com estímulos variados. Para o som inicial, que nos coloca daqui a 30 anos, Andy Field quer que isto seja uma forma de meter as crianças a falar mais sobre o presente, sobre a relação atual com esta Lisboa, até porque 30 anos é um tirinho.

“Eles dizem o que gostam e o que não gostam, desenham invenções para tornar Lisboa uma melhor cidade, aqui eles não gostam dos carros, do trânsito, ou os pais os levam de carro ou estão em autocarros demasiado cheios, tudo isto se reflete nas coisas que dizem: querem carros voadores, redesenhar os autocarros e também criar espaços para as pessoas serem mais compreensivas, um sítio para discutir o racismo, etc”, conta.

Quando avançamos os ponteiros 60 anos, o artista inglês gosta que tenham uma visão mais global, Lisboa se pensarmos no futuro mundial, o que lhe aconteceria, o que queriam que lhe acontecesse, como colocamos os adultos a discutir mais as alterações climáticas. E aí, não vão cá com meias medidas, sugerem desastres naturais, tsunamis e incêndios, a ver se isto vai ao sítio.

90 anos depois, Andy Field tenta que pensem sobre eles, o seu lugar perfeito, a sua utopia urbana, o seu sonho, no fundo, que valores é que lhes importam. “Digo que são eles que decidem quem é que manda na cidade, e isso é muito interessante, apareceu o comunismo rapidamente, um deles disse que eram os trabalhadores que mandavam, depois outra disse que queria que a sua mãe mandasse na cidade, que é boa a tomar conta dela, por isso também seria boa a fazê-lo com a cidade, é um reflexo de quem são”.

E é nesse sentido que andar de cidade em cidade gera resultados muito diferentes. Andy refere o exemplo chinês:

“Estivemos em Pequim, e quando perguntei quem é que devia mandar na cidade, todos, mas todos, responderam: ‘nós’. Na China, onde não há história real de democracia, é claro que eles entendem que as coisas estão organizadas de outra forma, e depois, quando lhes perguntei quem estaria no comando se eles não pudessem estar começaram a responder coisas como: ‘Fazemos uma competição e no final o povo escolhe quem quer a liderar a cidade’. Ou seja, inventaram a democracia, belo trabalho, não digam é ao Governo porque são presos”.

Não é a primeira vez que Andy Field apresenta o seu trabalho em Lisboa. Em 2012, esteve na Culturgest com a estrutura Forest Fringe, que co-dirige com Deborah Pearson e que é um chapéu-de-chuva comunitário para vários artistas que hoje são alguns dos mais consagrados do circuito europeu artístico, como Tania El Khoury, Tim Etchells, Deborah Pearson, Action Hero, Chris Thorpe, entre tantos outros que passam por Portugal com frequência. Apareceu como alternativa ao histerismo e ao excesso de informação do Festival de Edimburgo e foi precisamente um microfestival, uma amostra de vários dos seus artistas, que a Forest Fringe apresentou – tal como agora, com este “Lookout” – a convite de Francisco Frazão. Nesse sentido, Andy Field admite que ficou muito contente quando soube que o programador que havia estado na Culturgest durante 13 anos tinha um novo trabalho, um novo espaço, o Teatro do Bairro Alto, que deve abrir portas em Outubro/Novembro.

A performance é o resultado de um conflito, não pretende dar respostas aos adultos

Em “Lookout”, Andy Field fala de esperança em confronto com desespero. Mas não serão estes conceitos incompatíveis? “Sim, acho que são. Mas, mais uma vez as crianças são as melhores pessoas para lidar com um paradoxo, eles não têm a mesma noção de desconforto que nós temos, um espectáculo pode ser muito esperançoso e cheio de desespero ao mesmo tempo. Isso reflete claramente onde estou, neste momento, não consigo resolver essas contradições. Excluindo o momento político que está a viver o Reino Unido, é melhor nem falar disso, é muito difícil saber onde estamos neste momento, nós mundo, há um desespero enorme com a crise ambiental, há um crescimento enorme da extrema-direita e do fascismo, mas ao mesmo tempo estamos a viver, ou podemos dizê-lo, a era com mais esperança de sempre, a violência está mais baixa do que nunca, há mais pessoas fora do limiar da pobreza do que alguma vez houve, são factos. Portanto, estou em conflito profundo e presumo que este espectáculo também, e isto não pretende dar respostas aos adultos, até porque não tenho essas respostas, não faço ideia”, conclui. É na boa Andy, ninguém sabe.

“Lookout”: 29 e 30 de junho — 16h, 16h45, 17h30, 18h30, 19h15 e 20h; Centro Europeu Jean Monet, Lisboa; bilhetes a 5 euros; lotação de 8 pessoas por sessão