Título: Schlump
Autor: Hans Herbert Grimm
Editora: PIM! Edições
Páginas: 272
Preço: 18,80 €

A reboque do prefácio de Volker Weidermann, Schlump foi sistematicamente comparado a outros romances alemães acerca da Primeira Grande Guerra, em particular ao célebre A Oeste Nada de Novo de Erich Maria Remarque. No entanto, talvez seja mais útil ler Schlump à luz de três outras obras.

Schlump parece ser o herdeiro de Decameron (como já foi sugerido por Mercedes Monmany no jornal espanhol ABC) e de Mil e Uma Noites, livros em que os protagonistas se veem forçados a passar os seus dias a contar histórias, no primeiro caso, enquanto aguardam que a morte, trazida pela peste negra, abandone Florença e, no segundo caso, para adiar a data em que Xerazade será executada.

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Tal como nestes dois clássicos, as histórias que Schlump conta aos seus camaradas e as histórias que estes lhe contam a si aparentam não ter outro objectivo que não seja o de desviar o olhar da monstruosa e incompreensível morte que, de forma lenta mas constante, se avizinha dos soldados. O barulho dos canhões vai ficando cada vez mais próximo e as ideias acerca da guerra que levaram o jovem Schlump a alistar-se vão apodrecendo diante dos seus olhos até que tudo culmina na extraordinária e violentíssima história de Michel que, podendo matar um soldado inglês com uma pistola, opta por encostar-se ao seu adversário e fazer explodir uma granada usando o seu próprio corpo. É nesse momento que a ideia de honra e orgulho pátrio se revelam irremediavelmente como uma ilusão infantil para Schlump. A guerra, percebe agora o protagonista, espalha-se por todo o lado, enche as trincheiras de sangue e lodo e contamina moralmente tudo à sua volta, sufocando o eventual heroísmo dos soldados. A ideia de homens que se superam em nome de uma causa nacional (uma ideia que surge no romance apenas pela boca de uma personagem enlouquecida) dá lugar à lama que invade até a alma dos soldados:

“Lama desde há vinte dias, só lama, já não havia uma palavra cordial, só se praguejava” (p.142).

Também à semelhança do que acontece nas duas obras acima referidas, as histórias que os soldados vão contando versam sobre o que de mais distante da morte existe. Quase todas as narrativas que interrompem a descrição da guerra falam sobre mulheres e seduções, sendo a grande maioria destas histórias hilariantes. O riso serve, assim, como forma de espantar a morte, que aguarda apenas o momento climático destas aventuras para surgir de novo em todo o seu esplendor.

Schlump deve ainda ser lido como um precursor de Slaughterhouse 5, de Kurt Vonnegut Jr. Ainda que o escritor estadunidense com toda a certeza não conhecesse a obra de Hans Herbert Grimm, os paralelos com o romance de Vonnegut sobre o bombardeamento de Dresden são evidentes. Em Slaughterhouse 5, para retirar o heroísmo à narrativa, Vonnegut faz dos seus soldados crianças que se comportam, por isso, de forma infantil.

Hans Herbert Grimm (1896 – 1950)

Em Schlump, não só o protagonista é ainda quase uma criança (tem dezassete anos quando se alista, à semelhança de Grimm que se alista com dezoito), mas toda a estratégia militar assenta em decisões infantis que facilmente poderiam ter sido tomadas por crianças (veja-se o paralelo entre soldados e crianças quando Grimm escreve “os pobres recrutas sacrificavam o sono noturno, de que as crianças tanto precisam” (p. 186)). Schlump alista-se na nobre esperança de conseguir mais facilmente seduzir raparigas. É favorecido na formação dos recrutas por um superior apenas por ter “um traseiro rijo como aço” (p. 31). De seguida, apenas porque fala um francês razoável, e não obstante a sua juventude e inexperiência, é nomeado para dirigir o centro de comando militar de Loffrande. Ao contrário do que seria de esperar, Schlump consegue não ser terrível nesse posto, mas acaba mesmo assim por se ver afastado. Schlump dirige-se então a Mons-en-P. para saber qual a sua nova posição. Aí, por não se ter aproveitado do seu antigo cargo para obter para si roupas novas, é tomado por imbecil e enviado para as trincheiras. A errância e aleatoriedade dos destinos designados para Schlump assemelha-se em tudo à estratégia militar alemã descrita por Grimm, o que, naturalmente, justificaria a conturbada história em volta da publicação de Schlump bem como da vida de Hans Herbert Grimm, uma história contada aqui pela Rita Cipriano e que resume bem a Alemanha da primeira metade do século XX.

Ainda que interessante, Schlump não está isento de problemas, sendo o principal de entre eles, possivelmente, o retrato maniqueísta que Grimm faz das mulheres. As mulheres com mais de trinta anos, como já Max Liu salientou no The Independent, tendem a ser grotescas enquanto as raparigas jovens são graciosas e belas e estão sempre sedentas de se deitar com Schlump mal para isso tenham uma oportunidade.

Ainda assim, estas mulheres têm um papel fundamental no romance ao revelarem por duas vezes a infantilidade de Schlump e a incapacidade que este tem de compreender o que é estar do outro lado da barricada, o que é ser mulher, o que é ser francês ou, mais genericamente, o que é não ser Schlump. Certa vez, a jovem Marie irrompe pelo escritório de Schlump adentro e desata a beijá-lo. Schlump toma então as rédeas da situação e procura forçá-la a deitar-se consigo. No entanto, quando “pouco faltava para que Schlump alcançasse a vitória e Marie, com gosto, se entregasse à derrota” (p.48), o telefone toca e Marie foge. A partir desse momento, Marie passa a ignorá-lo quando se cruzam, “dando-lhe a entender o desprezo que sentia”. Schlump apercebe-se assim de que “fora um imbecil” e que o seu comportamento fora inaceitável.

Pouco depois, duas mulheres francesas, desdentadas, bigodudas e com cara de camembert velho aparecem no escritório para resolver uma disputa de honra vital para elas. As duas senhoras acabam à bulha uma com a outra enquanto Schlump chora a rir, o que naturalmente as ofende sobremaneira. Talvez estes dois episódios sirvam para Grimm demonstrar que o que se passava nos escritórios de Loffrande era pouco diferente do que encaminhava milhões de soldados para as trincheiras. Talvez a guerra travada pela Alemanha se ficasse a dever apenas à notória falta de aptidão dos coronéis e chanceleres para, entretidos que estavam a jogar às cartas nos seus robustos bunkers, imaginar o que é ser uma velha bigoduda em Loffrande ou um rapaz imbecil nas trincheiras.

joaopvala@gmail.com