Digamos que o mal é sempre uma possibilidade altamente provável. Que somos um armário de fraquezas prontas para saírem cá para fora. E que a banalidade com que se assiste a tudo isto prolifera, porque no fundo não passamos de seres humanos a fazer de seres humanos e mais vale não incomodar a ordem natural do mundo e das coisas. É mais seguro ser espectador que correr o risco de acabar mal como participante.

Quando o conto “A Lotaria” foi publicado pela primeira vez, em 1948, na revista New Yorker, instalou um alvoroço inédito entre a comunidade de leitores, incapaz de isolar ficção e realidade. Muitos desataram a escrever cartas (chegaram às centenas), a grande maioria delas horrorizadas com o enredo. Pediam satisfações e ameaçavam cancelar a sua subscrição perante o conteúdo “horrendo” e o “mau gosto” da autora. Outros tantos queriam saber onde se passava o episódio, quem sabe se para se encaminharem para tal paragem e satisfazerem a mais mórbida das curiosidades.

Dona de casa desesperada? Cem anos de Shirley Jackson

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Ninguém esperava que aquele agradável 27 de junho terminasse em tragédia, e a indignação foi tão grande quanto maior foi a surpresa pelo remate da história, que se resume de uma penada. De resto, Shirley Jackson (1916-1955) terá despachado o texto (mais tarde inserido no único volume de contos por si publicado ainda em vida) durante uma tarde, enquanto os filhos brincavam lá fora, como se a fronteira entre o jardim do bem e o do mal fosse tão ténue e vizinha como efetivamente é.

Na trama que fecha a edição recém lançada pela Cavalo de Ferro (e deixamos desde já o alerta de spoiler), os residentes de uma terra americana não identificada participam num rito anual que consiste em apedrejar até à morte uma pessoa escolhida através de um sorteio. Podíamos rebobinar o enredo, começar por essa jornada amena e florida de verão, mas isso foi o que fez Shirley, e bem melhor que qualquer um de nós, a despistar-nos o máximo de tempo possível dessa taluda envenenada que há-de chegar.

“A Lotaria” tornou-se um clássico instantâneo, adaptado aos palcos, à televisão, à ópera e ao ballet, e aparecendo até num episódio de “Os Simpsons”, o sofá mais icónico dos EUA. Mas a sua mensagem está longe de se esgotar numa fait divers da cultura pop, por mais pedagógico e antológico que ele seja — há um outro para juntar à festa: 27 de junho, a data do conto mais célebre, passou à Histórias como o Shirley Jackson Day.

Os sinais de alerta estão no seguidismo, na cegueira da carneirada, na perpetuação das mais enraizadas tradições sem questionamento, na ausência de sobressaltos, na demissão de vigilância (rapidamente trocada por um policiamento dos bons costumes) — os ritos com que as personagens convivem são tão vetustos que nem nos lembramos das suas origens. O destino está selado naquele papelinho guardado no interior de uma caixa preta que cada um vai tirando a medo.

Os locais lançam pedras porque sempre lançaram pedras. Lotaria em junho é sinal de bom augúrio, rezam as vozes, e seguir as pisadas de outras terras onde, ouviu-se dizer, se pôs termo a esta tradição, não é visto com bons olhos. Mas há mais naquilo que é vertido por uma pena que tem tanto de gótico e de thriller como de contemporâneo e até chegarmos a esta “Lotaria” vamos acumulando outros sustos.

A capa de “A Lotaria e Outras Histórias”, de Shirley Jackson (Cavalo de Ferro)

É impossível seguir por cada conto sem sentir o desconforto, naquele perturbador toque de fantástico e mistério que molda cada experiência. Em modalidade small town ou numa metrópole como Nova Iorque, o lado mais negro do american way of life, ou de qualquer vida em geral, vem ao de cima. De uma forma mais ou menos contida, essa semente está em qualquer uma das restantes pequenas histórias agora compiladas.

“O amante demoníaco” e outras angústias de trazer por casa

A presa e o predador rapidamente mudam de posições num jogo do gato e do rato. Há o exemplo sintomático da vítima que se vê roubada pela vizinha, e que ao tentar reencontrar os seus haveres na casa da intrusa acaba surpreendida pela ladra e mete a viola no saco. Ou o caso da criança que se queixa em casa das maldades de um colega de escola, para no fim de contas os pais descobrirem que não há nenhum pivete com esse nome na escola. E a eterna solteira de idade avançada que espera e desespera pelo noivo que não chega por mais que lá fora, como sempre, faça bom tempo.

“Viu inegavelmente que era um dia belo. Ocorreu-lhe que talvez não devesse usar o vestido de seda azul; era demasiado simples, quase austero, e queria mostrar-se delicada, feminina. Ansiosamente, passou em revista os vestidos do armário, e hesitou em relação a um de algodão estampado que vestira no Verão anterior; era demasiado jovem para ela, e tinha gola de renda, e era demasiado cedo no ano para um vestido estampado, ainda assim…” (O amante demoníaco”)

Velhos temas como o racismo e a intolerância pairam no ar, até porque o medo é um ótimo filão e há sempre uma mãe zelosa pronta para encher os ouvidos das filhas. Todo o cuidado é pouco com o grupo de marinheiros quando mais um navio atraca numa pequena localidade.

De Hill House para o mundo

Se ainda não percebeu bem ao que vem, aqui vai um pouco mais de enquadramento. O aviso estava feito naquelas linhas inaugurais de “A maldição de Hill House”, editado em 2018 pela mesma Cavalo de Ferro, para aquele que foi um dos primeiros contactos com a obra de Jackson entre nós.

“Nenhum organismo vivo pode existir durante muito tempo em condições de realidade absoluta, mantendo a sanidade; há quem diga que até as cotovias e os gafanhotos sonham”.

Pessoa dada ao ocultismo e seduzida pelos mistérios da feitiçaria, Shirley e o marido foram ambos traídos pelo estilo de vida. Ela de forma ainda mais precoce, com apenas 48 anos, fruto de incontáveis excessos alimentares e nicotina, estereótipo perfeito dos imprevidentes estômagos americanos. Hill House foi o seu quinto romance, lançado em 1959, e segue um grupo de participantes num estudo paranormal numa mansão assombrada, uma experiência interpolada por fenómenos sobrenaturais, como não podia deixar de ser, e a dose certa de psicologia. Stephen King descreveria o livro como um dos mais relevantes romances de terror do século XX. Pela altura da sua publicação, Jackson acusava já demasiado peso e o consumo de barbitúricos e anfetaminas que aceleraram ainda mais o estado de ansiedade que progressivamente começou a relevar.

[o trailer de “A Maldição de Hill House”, adaptação para TV produzida pela Netflix:]

https://www.youtube.com/watch?v=G9OzG53VwIk

O tempo de vida da autora nascida em São Francisco, e que se estreou no romance em 1948 com The Road Through the Wall, registo com traços autobiográficos sobre a sua infância na Califórnia, chegou para assinar, ao longo de duas décadas, seis romances, dois livros de memórias e ainda mais de 200 contos, muitos deles saídos de North Bennington, Vermont, onde Shirley e o professor Stanley Edgar Hyman (com quem se casou em 1940) se instalaram depois de passagens por Nova Iorque e Westport, Connecticut. Jackson alongou-se na escrita, enquanto Hyman ganhou reputação como crítico literário. Calorosos anfitriões, quase sempre rodeados de outros talentos das letras, caso de Ralph Ellison, alimentaram uma biblioteca pessoal com mais de 100 mil entradas e criaram quatro filhos Laurence (Laurie), Joanne (Jannie), Sarah (Sally), e Barry, matéria-prima de sobra para muitas das tramas maternas, a começar por “Life Among Savages” (algo como “A vida entre os selvagens”).

Arredada da vida pública, sobretudo nos últimos anos de vida, e avessa a discutir o seu trabalho, a prova da popularidade e vitalidade do legado está por todo o lado, a começar pelas plataformas mais consensuais dos nossos dias, que capitalizam sobre uma série de fenómenos indie. É possível que se cruze na Netflix com um formato levemente inspirado em “A Maldição de Hill House” e que tropece algures com a adaptação ao cinema de “We Have Always Lived in the Castel”. Já em maio de 2018 chegava a notícia de que a atriz Elisabeth Moss fará parte do elenco de uma espécie de biopic de Shirley Jackson, realizado por Josephine Decker. “Shirley” deverá estrear-se ainda este ano, para sorte nossa e mais um empurrão no mito.