Paris voltou a ser palco da arte que é sua por direito, a alta-costura. Desde o último domingo e até esta quarta-feira, todas as atenções estiveram voltadas para as coleções de outono 2019 das grandes casas. Do quadro predominantemente negro pintado por Maria Grazia Chiuri para a Christian Dior ao triunfo de Virginie Viard, sucessora de Karl Lagerfeld na Chanel, passando pelo jogo de transparências e tons adocicados de Giorgio Armani e pelas silhuetas intemporais da casa Valentino, a moda de atelier pertence a Paris, seja pela mão de criadores franceses ou não. Mais do que criar algumas das peças mais cobiçadas do mundo, os gigantes do mundo da moda estão, aos poucos, a alterar aquela que tem sido a rota da alta-costura, até aqui um universo cristalizado em imagens luxuosas e ostensivas. Nos últimos dias, Paris assistiu a aproximações ao pronto-a-vestir, a um desejo de ir ao encontro das necessidades da mulher real, a níveis tão práticos como a construção da roupa, mas também na abertura das passerelles a valores como a inclusão e a individualidade.

Depois de passarem pela sala de desfiles, as manequins da Christian Dior percorreram o jardim © Estrop/Getty Images

Christian Dior foi o primeiro peso pesado a apresentar as suas propostas de alta-costura para a próxima estação fria. A arquitetura foi, para a diretora criativa da maison, a base sobre a qual construiu a coleção. Não foi por acaso que vimos irromper uma manequim que vestia apenas uma maquete de um edifício em plena passerelle. Da ideia de vestuário como casa que habitamos, Maria Grazia Chiuri partiu para uma reflexão sobre estrutura, composição e detalhe. Para isso, quase anulou a presença de cor. O preto predominou, à medida que a criadora italiana exibiu uma versão leve e desafogada da velha silhueta Dior.

“As roupas são modernas?” — a questão surgiu escrita a preto sobre o surpreendente coordenado branco que abriu o desfile. Ali, eram denunciadas as referências de Chiuri. Além de uma clara influência de trajes da Grécia Antiga, em particular a túnica feminina conhecida como peplos, foi a obra de Bernard Rudofsky, arquiteto, historiador e ensaísta contemporâneo do próprio Dior a motivar o encontro entre vestuário e arquitetura. Are Clothes Modern? é na verdade o título de um ensaio deste autor, redigido em 1947. No mesmo ano, o MoMA pediu a questão emprestada para construir uma exposição.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O interior da sala onde decorreu o desfile da Dior, um projeto cenográfico assinado por Penny Slinger © Rindoff/Charriau/Getty Images

Ora, desde que se instalou casa Dior, há precisamente três anos, Chiuri trabalha para desconstruir o vestuário feminino. Sem cinturas apertadas pelos preceitos da corseterie, de sapatos rasos e com manifestos feministas impossíveis de não ver, regressou inevitavelmente a um estado mais puro das formas e das silhuetas. Não espanta, por isso, que as cariátides (colunas gregas com formas de mulheres, aliando a função de sustentar um edifício ao valor decorativo) e os peplos tenham, agora, feito tanto sentido.

O desfile aconteceu no histórico edifício da marca, na Avenue Montaigne. A cenografia ficou a cargo de Penny Slinger, artista britânica que escureceu o interior da sala e ainda levou um grande tronco de árvore para junto da escadaria. Não faltaram cariátides, cuja influência na coleção de tornou mais flagrante em alguns dos coordenados. Uma coisa é certa: Maria Grazia Chiuri está a mudar a linguagem da Christian Dior. Com novos valores e reflexões transdisciplinares, continua a questionar a relação entre a mulher e a roupa. Um trabalho pouco consensual. Enquanto há vozes que acusam a designer italiana de estar a desvirtuar o estilo da maison, outras defendem-na no exercício de uma reatualização dos códigos Dior.

Em vez de um desfile, Giambattista Valli apresentou a sua coleção como se de uma exposição se tratasse © Getty Images

Nesse mesmo dia, 1 de julho, outros criadores desfilaram em Paris. Schiaparelli, Iris van Herpen, conhecida pelos efeitos visuais das suas peças, Ralph & Russo e Giambattista Valli ocuparam o segundo dia do calendário, este último, num formato alternativo ao desfile convencional. O criador optou por expor as suas criações como se de um museu se tratasse. Impactantes e românticas, as peças voltaram a assumir a forma de tule esculpido. O vestido é o elemento central, ora drapeado até à exaustão, ora com uma silhueta tubular, adornado com detalhes ricos, laços e caudas. Não admira que a Valli tenha faltado tempo para organizar um desfile. O designer lança em novembro uma coleção em colaboração com a H&M, além de ter assinado o vestido de noiva de Charlotte Casiraghi, cujo casamento aconteceu no último fim de semana.

Chanel: alta-costura para todos os dias, por Virginie Viard

Na terça-feira, a Chanel dominou a atualidade. Virginie Viard, a sucessora de Karl Lagerfeld, apresentou a sua primeira coleção de alta-costura desenhada a solo, no Grand Palais. A tradição cumpriu-se, desta vez com uma gigantesca biblioteca a servir de cenário — na realidade, inspirada na do apartamento de Gabrielle na Rue de Cambon, em Paris. E se no último desfile o cruzeiro Chanel tinha navegado a meio gás, agora é absolutamente unânime. A nova diretora criativa da maison, que foi braço direito de Lagerfeld nas últimas três décadas, impressionou com uma versão leve e descontraída da alta-costura de uma das casas de moda mais históricas do mundo.

Na última terça-feira, a Chanel transformou o Grand Palais numa grande biblioteca para o desfile da coleção de alta-costura outono 2019 © Victor VIRGILE/Gamma-Rapho via Getty Images

Cortou no número de vestidos dignos de passadeira vermelha. Estes deram lugar a longos sobretudos, jardineiras, bombers, vestidos curtos e a um sortido de peças surpreendentemente quotidianas. Tudo, sem que o minucioso trabalho de atelier tenha arredado pé, dos bordados às aplicações, da manipulação dos tecidos, penas e pedrarias. Com a sua primeira coleção de alta-costura, a designer mostrou que a normalidade (em oposição ao extravagante) pode ser desejável. A própria banda sonora refletiu isso, com o maestro Michel Gaubert a incluir uma versão de Glory Box, dos Portishead, na banda sonora do desfile. Afinal, parece que há algo em comum entre Virginie Viard e Maria Grazia Chiuri — um compromisso em tornar a moda, seja pronto-a-vestir ou alta-costura, mais woman-friendly. Assim de repente, o mundo é bem capaz de se adaptar a isso. Por cá, já nos habituámos a ver Maria Miguel em Chanel. A manequim portuguesa voltou a fazer parte do line-up.

Do outro lado da rua e no mesmo dia, Giorgio Armani reuniu convidados de luxo no Petit Palais. Sara Sampaio, Nicole Kidman e Zendaya sentaram-se na primeira fila e viram desfilar uma coleção dividida em dois núcleos cromáticos — o preto abriu e fechou a apresentação, no meio uma paleta luminosa de rosas, verdes e azuis bebé (uma seleção de cores que também esteve presente no desfile de Ralph & Russo, para não falar do delicioso desfile de F da Louis Vuitton, há duas semanas).

Giorgio Armani pintou a sua coleção de alta-costura a preto e pastéis @ Stephane Cardinale – Corbis/Corbis via Getty Images

O prato forte foram mesmo os vestidos, já a pensar nos brilharetes na red carpet, logo a seguir, os blazers de corte clássico e ombros evidenciados. As calças fluidas subiram a cintura feminina, as transparências, ora reveladoras, ora dispostas em camadas criando volume e movimento, marcam a coleção, bem como a utilização de pérolas e cristais para fazer cintilar algumas peças. Um desfile que não deixou  dúvidas — os tules e os cetins são mesmo os protagonistas do próximo outono Armani.

A última terça-feira ficou ainda marcada pelos desfiles dos franceses Alexis Mabille, Stéphane Rolland e Alexandre Vauthier. A fechar o terceiro de cinco dias dedicados à alta-costura, em Paris, esteve a Givenchy de Clare Waight Keller. Do tailleur perfeitamente clássico ao emaranhado de folhos, plumas e pérolas com que construiu a parte superior de um dos dois vestidos de noiva, a designer britânica abdicou da habitual lógica de coesão que rege uma coleção, a favor de uma boa dose de teatralidade. À revista Vogue, a criadora falou de uma “mulher anárquica”, saída de um “castelo imperfeito” e que trouxe com ela todos os elementos que fazem parte desse cenário.

“Nobreza Radical”, o título do desfile da Givenchy © White/Getty Images

O título dado ao desfile — “Nobreza Radical” — clarifica o conceito. Afinal, todas as imagens parecem ter saído desse tal castelo, o imaginário fantasioso de Clare Waight Keller, até aqui meio escondido, deu-lhes forma. As primeiras peças do desfile, tingidas a preto e branco, foram inspiradas nos pavimentos gráficos, os grandes vestidos em tafetá nas cortinas opulentas e os bordados prateados sobre um blazer e um casaco masculinos nos objetos em estanho. As plumas foram um elemento central ao longo do desfile. Kaia Gerber percorreu a passerelle num aparato de penas verdes. Um momento que, entre outros, fez lembrar a fórmula de sucesso de Pierpaolo Piccioli na Valentino.

Valentino: moda e emoção, por Pierpaolo Piccioli

Maison Margiela, Elie Saab, Guo Pei, Zuhair Murad e Jean Paul Gaultier apresentaram coleções esta quarta-feira, em Paris. A dupla Viktor & Rolf, que nos últimos anos se tem dedicado em exclusivo à alta-costura, também viu o seu desfile marcado para esse dia. Depois de uma coleção de vestidos absolutamente viral, em janeiro, o atelier optou por um registo, no mínimo, artesanal. As lãs tingidas (algumas peças pareciam mesmo pintadas à mão), a utilização de retalhos e as claras alusões à natureza, com representações do céu e do mar, marcaram o desfile. Uma verdadeira lição de ecologia, já que foram usados pigmentos naturais e métodos de tingimento artesanais. Neste campo, a dupla colaborou com a artista holandesa Claudy Jongstra.

A um dia do final de mais um calendário de alta-costura (oficialmente, a semana da moda termina quinta-feira, mas para este dia apenas está marcada uma apresentação de várias marcas de joias), Valentino foi aquilo a que se pode chamar uma chave de ouro, uma parada de silhuetas etéreas que alternou folhos, laços e volumes exibicionistas com longos vestidos clericais, uma terapia de color-blocking. Mas mais do que forma e cor, Pierpaolo Piccioli trouxe uma mensagem para Paris, o grande palco mundial da moda. “A única forma de dar vida à alta-costura hoje é abraçar as diferentes identidades e culturas das mulheres”, afirmou antes do desfile desta quarta-feira, citado pela Vogue.

Quando a mestria na manipulação dos materiais e na construção das peças e a silhueta de sonho estão garantidos — ninguém espera que o diretor criativo da Valentino se desvie deste caminho repleto de glórias –, é hora de posicionar a marca no que toca à sua forma de olhar para a mulher, mas, mais do que isso, de estabelecer uma caixa de diálogo com cada uma delas. Aí, o statement de Piccioli foi poderoso, a começar pela presença de várias veteranas das passerelles. Desfilou a norte-amerciana Lauren Hutton, de 75 anos, a britânica Cecilia Chancellor, de 52, a sul-africana Georgina Grenville, de 43, e a belga Hannelore Knuts, de 41 anos. Belezas singulares como a dominicana Lineisy Montero, a holandesa Saskia de Brauw, a coreana Yoon Young e a sudanesa Adut Akech também fizeram parte do line-up. No final, presenças habitualmente ilustres, como é o caso de Gigi Hadid, tornaram-se perfeitamente irrelevantes. Inclusão e individualidade foram as palavras-chave por detrás da roupa.

Pierpaolo Piccioli, diretor criativo da Valentino (de preto) com a equipa do atelier de alta-costura da marca © Peter White/Getty Images

A banda sonora ajudou a embalar todos os sentidos. Começou com “The Look of Love”, de Dusty Springfield, fez soar “Wild Is The Wind”, de Nina Simone, e garantiu um final emocionante ao som de “Natural Woman”, de Aretha Franklin, enquanto Pierpaolo e a sua equipa de atelier percorriam a passerelle. É inevitável tentar imaginar dedicação dos últimos meses. Um dos vestidos, obra de motivos florais adornada com aplicações, exigiu 990 horas de trabalho. Um outro, composto por vários quadrados de um fino tecido num rosa vibrante, levou 2.010 horas. Ainda sobre o final do desfile, há relatos do próprio Valentino Garavani, fundador da marca, a congratular com beijinhos cada membro da equipa. Parece que até os mais frios e distantes verteram uma lágrima, prova de que a moda não é apenas um espetáculo de consumo, é emoção que poucos conseguem trazer ao de cima.

Na fotogaleria, veja as imagens dos desfiles que se destacaram nesta semana de alta-costura, em Paris.