Onde nasceram os convocados de Fernando Santos que recentemente venceram a Liga das Nações, já pensou nisso? Tiremos aqui uns instantes para fazer as contas por distritos: Ronaldo, o capitão, nasceu na Madeira; Rui Patrício, o número 1, veio de Leiria (Marrazes); Gonçalo Guedes, marcador do golo que decidiu a final, é de Santarém (Benavente). Mas também há representantes de Braga, do Porto, de Lisboa ou do Algarve, entre outros. Mais importante do que isso: o local de nascimento conta alguma coisa, faz alguma diferença? Em Portugal, nenhuma. Mas no Brasil a realidade no futebol não é propriamente assim.

Como sintetizava este domingo o enviado do El País à Copa América, em cada estado existe um estilo que tem a sua vida própria, entre a alegria dentro do caos dos cariocas à técnica organizada dos paulistas passando pela parte mais tática no sul do país com uma maior influência germânica. Aliás, e passando os olhos para a nossa realidade nacional, ainda há muitos treinadores que procuram saber o estado de nascimento e formação de jogadores brasileiros que surgem recomendados às suas equipas. Ainda assim, e dentro de características que se assumem como intrínsecas, há sempre margem para mudar. Evoluir. Melhorar. Foi isso que Tite fez desde que assumiu o comando da seleção. Foi isso que deu a Tite a possibilidade de recuperar a Copa América 12 anos depois (com um triunfo do Uruguai e dois do Chile pelo meio). E a vitória com o Peru funcionou como confirmação.

Por muito que se tenha falado na antecâmara desta inesperada final (se poucos acreditavam que o Peru conseguiria bater o Uruguai, ainda menos pensavam ser possível vencer o Chile e logo por 3-0) de um “Perucanazo”, recordando o “Maracanazo” na final do Campeonato do Mundo de 1950 em que o Uruguai gelou o Brasil e os 200 mil espetadores presentes nesse dia no recinto, os números apontavam para tudo menos isso. Em condições normais, a qualidade individual, as dinâmicas coletivas e até o fator casa colocavam a formação de Tite na frente mas havia ainda um ponto extra que mostra bem o que mudou neste “novo” Brasil: em cinco jogos entre fase de grupos, quartos e meias-finais, Alisson não sofreu um único golo ao longo de 450 minutos. No encontro decisivo, o registo caiu numa grande penalidade pouco antes do intervalo mas nem por isso o paradigma mudou.

O Brasil é e será sempre um país de artistas. Na cultura, na música, no desporto. E são aqueles artistas transversais, que quem gosta ama e quem não segue reconhece. No futebol não é exceção e as melhores versões do Brasil surgiram no tempo em que os grandes artistas da história do futebol nacional tiveram equipas em que havia “carregadores de piano” para os melhores tocarem a sua música. Sem Neymar, e olhando para a última votação da Bola de Ouro, este Brasil não tem os melhores dos melhores. E o que mais impressiona é que esses melhores-não-melhores estão sobretudo ao serviço de uma ideia coletiva, como tinha ficado bem espelhado no clássico das meias com a Argentina. O Brasil já foi um conjunto de grandes jogadores que nem sempre formavam uma grande equipa; este Brasil é uma grande equipa que consegue aproveitar da melhor forma grandes jogadores.

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Depois da goleada sofrida na fase de grupos por 5-0, Ricardo Gareca, o argentino mais peruano de todos que mudou por completo o futebol do país, como explicava a Folha de São Paulo, montou uma estratégia com o seu quê de risco mas que foi funcionando, a condicionar a saída do Brasil. No entanto, foi uma questão de tempo até aparecer a veia mais pragmática dos anfitriões: já depois de um livre de Cuevas que não passou longe da baliza de Alisson, Dani Alves explorou as costas de Trauco onde estava Gabriel Jesus, o avançado do Manchester City cruzou largo e Everton, sozinho, voltou a fazer jus à alcunha de Cebolinha e deixou os defesas peruanos a chorar o primeiro golo logo aos 15′, sobretudo o lateral Advíncula que falhou no movimento de aproximação.

O Brasil não ia propriamente muitas vezes à baliza contrária mas, quando ia, o perigo tornava-se inevitável como aconteceu com Coutinho, a desviar na passada ao lado uma jogada que se desenvolveu pela esquerda, e Firmino, com um cabeceamento que passou perto da trave de Gallese. Já o Peru, a ter bem mais bola no terreno adversário do que no encontro da fase de grupos, não conseguia criar lances de perigo até que o empate lhe foi entregue quase de mão beijada: Thiago Silva entrou de carrinho para um corte com o braço a deslizar, o árbitro marcou penálti e Guerrero, grande referência dos peruanos que esteve suspenso por um problema num controlo anti-, fez o 1-1 já perto do intervalo (44′). As dúvidas voltavam ao jogo mas durariam pouco tempo: aos 45+3′, Firmino recuperou a bola, Arthur conduziu e Gabriel Jesus rematou colocado para nova vantagem do conjunto anfitrião.

O segundo tempo recomeçou com as mesmas características mas uma nuance que fez muita diferença nos primeiros 20 minutos, com Coutinho a ter liberdade para poder vir buscar bola mais atrás e aproveitar um buraco entre linhas de pressão do Peru. Quase todo o jogo ofensivo dos brasileiros passava pelos pés (e pela velocidade) do jogador do Barcelona, que ficou perto do 3-1 por mais do que uma vez antes de Gabriel Jesus ver o segundo amarelo de forma exagerada e deixar a formação de Tite reduzida a dez a cerca de 20 minutos do final do encontro, altura em que o Peru teve dois remates perigosos por Trauco (defesa de Alisson para canto) e Flores (a rasar o poste como guarda-redes batido) antes da entrada no quarto de hora final da partida.

Enquanto o jogador do City chorava nas escadas de acesso ao balneário por considerar que tinha sido uma expulsão injusta, Tite mexia na equipa com as entradas de Richarlison e Éder Militão para os lugares de Firmino e Coutinho, colocando maior presença no eixo recuado e permitindo que Dani Alves tivesse outro tipo de movimentos mais adiantados pela direita. Mais importante até do que esses reajustes táticos, a equipa soube jogar com o momento – algo que falhou nos últimos dois Mundiais, em 2014 e 2018 –, não teve qualquer problema em ganhar tempo nas pequenas faltas e acabou a chegar mesmo ao 3-1 por Richarlison, em mais uma grande penalidade que motivou consulta mais demorada por parte do VAR e do árbitro de campo (88′).